Angola/Corpos de vítimas do 27 de Maio não correspondem ao seu ADN - familiares
Bissau, 24 Mar 23 (ANG) - Os órfãos das vítimas de 27 de Maio de 1977 em Angola divulgaram quinta-feira uma carta aberta declarando que as ossadas que lhes foram entregues como sendo dos seus familiares não correspondem aos seus respectivos ADN.
Reagrupados na
associação M27, os familiares das vítimas do 27 de Maio dão conta da sua dor e
denunciam nesta missiva "uma máquina de propaganda" em torno da
entrega de corpos “em cerimónias públicas amplamente televisionadas, em véspera
de eleições presidenciais” no ano passado.
"O país viu. Todo o
país viu e viveu esse momento como um tempo de verdade e reconciliação. Porém,
nem todos recebemos acriticamente os restos mortais que nos foram indicados
como pertencentes aos nossos pais. Alguns de nós pediram a realização de testes
de ADN para confirmar a identidade dos cadáveres”,
escreve na sua “carta a Angola” o colectivo de familiares das vítimas do
27 de Maio ao denunciar aquilo que qualifica de "exercício de
crueldade" ao referir-se às cerimónias fúnebres e entregas de
ossadas a familiares organizadas no ano passado pelo Estado Angolano em
homenagem a algumas das vítimas da violenta repressão, a 27 de Maio de 1977, do
que na altura foi qualificado de tentativa de golpe.
Em entrevista à RFI, um dos membros do
colectivo, Nelson do Nascimento, que tinha 12 anos quando desapareceu o pai,
Joaquim Maria do Nascimento, militar dos Serviços de Segurança de Angola, dá
conta do processo de análise dos restos mortais que foram entregues a alguns
familiares das vítimas do 27 de Maio.
"Os dados concretos que nós temos é a assessoria científica de
pessoas altamente capacitadas lideradas pelo muito respeitado médico legista e
professor Duarte Nuno Vieira, da faculdade de medicina da Universidade de
Coimbra que foi a pessoa que liderou a equipa que esteve em Angola a trabalhar
com o Ministério da Justiça através da CIVICOP, que é a Comissão de
Reconciliação em Memória das Vítimas dos Conflitos Políticos", começa por explicar.
"Os corpos que foram estudados, que foram entregues pela CIVICOP,
trata-se de oito corpos que foram estudados contra o ADN de órfãos do 27 de
Maio, nomeadamente os filhos de Sita Valles e de José Van-Dunem (um jovem casal
de dirigentes do MPLA), o filho do Rui Coelho (ex-director de gabinete de Nito
Alves, antigo ministro do interior acusado de liderar a tentativa de golpe), eu
também fui um dos órfãos que doou o seu ADN, o meu pai chamava-se Joaquim Maria
do Nascimento, também não foi confirmada a presença das ossadas dele", refere Nelson do Nascimento.
"Os resultados foram formalmente comunicados agora, esta semana,
mas nós já tínhamos sido informados tão logo o Instituto de Medicina Legal
concluiu os trabalhos de cruzamento dos ADN, sobre essa conclusão dolorosa que
vem reavivar tensões, dor, frustração e desolação", revela o membro da associação M27 ao explicar que
a "carta
a Angola" tornada pública esta quinta-feira pelo colectivo tem
por intuito provocar uma tomada de consciência.
"O que se pretende é tão simplesmente despertar Angola inteira
para uma situação que se vem arrastando desde praticamente o início da vida de
Angola como país independente e suscitar a adesão, despertar a consciência
nacional para uma coisa que é tão simplesmente o episódio mais sombrio que
Angola testemunhou desde que passou a estar independente. Não pode ser uma
coisa restrita porque se sabe que afectou milhões de pessoas, afectou naquela
altura pelo menos uma família em duas de Angola no mínimo. E porque já tivemos
noutras ocasiões iniciativas similares mas dirigidas simplesmente ao Presidente
da República e não surtiram efeito. Já tinham sido dirigidas várias cartas ao
Presidente anterior (José Eduardo dos Santos) e a este Presidente (João
Lourenço) também e agora, como as coisas não mudam, antes pelo contrário, houve
a natural decisão de envolver os nossos compatriotas porque é uma situação que
pesa sobre os ombros de Angola inteira", diz
Nelson do Nascimento.
Com efeito, na carta na qual expressam o
seu "espanto
e dor" perante os resultados das análises, os órfãos do 27 de
Maio consideram que “há seguramente ainda muito por desvendar sobre o
que aconteceu no dia 27 de Maio de 1977, sobre os acontecimentos que o
precederam e sobre a barbárie que se lhe seguiu”, uma situação que -no
seu entender- não se pretende ver esclarecida. “Foi criada toda
uma máquina de propaganda que poderia garantir tudo menos um trabalho rigoroso
e um resultado sério”, consideram os autores da missiva.
Ao reclamar que sejam tomadas medidas para
que os responsáveis e participantes na repressão –muitos dos quais ainda vivos
e identificados- indiquem os locais onde se encontram os corpos dos seus
familiares, os membros da associação M27 apelam ao povo angolano “que se una na
busca da verdade”.
A 27 de Maio de 1977 uma alegada tentativa
de golpe de Estado supostamente liderada por Nito Alves, então ex-ministro do
Interior, foi brutalmente reprimida pelo regime de Agostinho Neto, primeiro
Presidente de Angola. Durante os acontecimentos que seguiram esta alegada
tentativa de desestabilização, 30 mil pessoas foram mortas.
Mais de quarenta anos depois, em 2019, o
executivo de João Lourenço ordenou a criação de uma comissão, a CIVICOP, no
intuito de elaborar um plano geral de homenagem às vítimas dos conflitos
políticos ocorridos entre 11 de Novembro de 1975 e 4 de Abril de 2002, data que
marca o fim da guerra civil em Angola. ANG/RFI
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