Egípto/Liga Árabe adopta Plano para reconstrução de Faixa de Gaza
Bissau, 05 Mar 25 (ANG) - Os países da Liga Árabe adoptaram ,terça-feira, numa cimeira no Cairo um plano de reconstrução da Faixa de Gaza orçado em 53 mil milhões de Dólares sobre 5 anos prevendo a permanência dos habitantes do enclave no seu território e a instalação de um poder interino de tecnocratas para gerir o processo.
No âmbito deste plano que se apresenta como
uma alternativa àquele que foi preconizado pelos Estados Unidos, prevê-se uma
primeira fase de seis meses incidindo sobre a remoção de detritos e explosivos,
sendo que num período ulterior, antevê-se a construção de infraestruturas
essenciais bem como habitações permanentes e, em seguida, um porto comercial,
hotéis e um aeroporto.
Este plano apoiado firmemente pela ONU, mas
igualmente pelo Hamas e a Alta Autoridade Palestiniana, foi rejeitado por
Israel que exige o desarmamento imediato do Hamas e não vê o executivo de
Mahmud Abbas como um parceiro de confiança.
Outro ponto de incerteza é o financiamento
deste plano, refere Ivo Sobral, coordenador de Mestrado de Relações
Internacionais na Universidade de Abu Dhabi.
RFI: quem poderia financiar este plano de
reconstrução a seu ver?
Ivo Sobral: O
problema básico é que o Egipto, quase involuntariamente, está a apontar para os
países do Golfo, ou seja, a Arábia Saudita, o Bahrein, o Qatar e os Emirados
Árabes Unidos, assim como o Kuwait para pagar este enorme investimento, os
cerca de 50 biliões de Euros que estão na mesa. Obviamente, estes países
apoiaram, estão a aceitar o plano como uma evolução positiva para Gaza, mas
ainda não confirmaram efectivamente que iriam pagar este enorme plano. O
próprio Egipto, por exemplo, apesar de ser um dos países mais importantes do
Médio Oriente, não tem a capacidade económica para avançar para um plano
destes. Na economia do Egipto existem enormes problemas estruturais, uma
inflação galopante e o próprio Egito está dependente de pacotes financeiros de
ajuda dos países do Golfo. Portanto, o Egipto, por si só, não poderia de
nenhuma maneira sequer apoiar este plano economicamente, assim como outros
países. A própria Jordânia, que já também confirmou o apoio a este plano, está
numa capacidade completamente impossível para suportar este plano
economicamente, porque a própria Jordânia também depende de pacotes financeiros
do Golfo para continuar a manter-se e a sobreviver no Médio Oriente economicamente.
RFI: Este plano também tem o apoio do próprio
Hamas e também da Autoridade Palestiniana, que diz-se pronta a desempenhar o
seu papel na Faixa de Gaza.
Ivo Sobral: Exactamente.
Há aqui um factor interessante, uma nomenclatura bastante curiosa para
encontrar no Médio Oriente, que é a designação de "tecnocracia". Ou
seja, o Egito está a propor um governo constituído por tecnocratas de origem
palestiniana, em particular da Autoridade Palestiniana para fazer a gestão da
infraestrutura, da logística de Gaza. Portanto, é aqui algo novo, um modelo sui
generis. Nunca se ouviu falar sequer esta nomenclatura aqui para o Médio
Oriente. Mas depende de figuras palestinianas que iriam fazer essa mesma gestão
de Gaza. O Hamas já concordou, apesar de manter alguma exigências relativamente
ao próprio desarmamento do Hamas. Ou seja, o Egipto ainda não providenciou
detalhes nenhuns neste plano relativamente ao que vai acontecer com o Hamas.
Portanto, isso é uma questão que continua em aberto.
RFI: No seu discurso, o Presidente egípcio
também lançou uma achega ao presidente Trump. Disse que ele acha que "ele
é perfeitamente capaz de conduzir o processo de paz". E, aliás, esse plano
não parece ser completamente incompatível com o plano previsto por Donald Trump
que quer fazer uma "Riviera no Médio Oriente".
Ivo Sobral: Sim,
o Egipto aqui é muito cauteloso como sempre, tentando jogar com todos os
ângulos desta situação. O Egipto não pode hostilizar os Estados Unidos porque
está na dependência económica e militar directa dos Estados Unidos, assim como
de outros países, e, portanto, está aqui muito cautelosamente, a não fechar a
porta aos Estados Unidos. E, ao mesmo tempo, está a tentar apelar para esta
espécie de orgulho árabe, esta noção de identidade árabe, onde seriam os árabes
a preparar um plano para reconstruir Gaza. Para Sissi, o Presidente do Egipto,
é fundamental conseguir fazer isto internamente e externamente. O Egipto está
muito interessado que este plano vá avante, apesar de o Egipto também ter os
seus problemas internos económicos, mas poderá também ser inclusive, uma boa
oportunidade para o Egipto. Portanto, esta logística de todas estas máquinas,
estes produtos, tudo o que seja necessário para construir, inevitavelmente
terão que vir do lado do Egipto para entrar em Gaza. Portanto, também é uma
oportunidade para o Egipto em termos económicos.
RFI: Facto curioso, nesta reunião não estava
o Príncipe herdeiro da Arábia Saudita. Isto significa alguma coisa?
Ivo Sobral: Não
estava quase nenhum líder importante do Golfo. Foram todos representados quase
ao nível dos seus "vices" e, assim como de outras entidades
governamentais secundárias. Isso não quer dizer que não existe o apoio da
Arábia Saudita ou de outro país do Golfo. Agora, obviamente, os países do Golfo
estão muito cautelosos. Estamos numa situação bastante sensível em termos de
política internacional por causa da nova presidência americana. E ninguém quer
aqui correr riscos de irritar o Presidente Trump numa situação tão delicada.
Neste momento, a Arábia Saudita está envolvida também no processo de negociação
entre os Estados Unidos e a Rússia. A Arábia Saudita tem outras prerrogativas
também activas para a sua diplomacia.
RFI: O Egipto agora está de olhos postos
sobre a cimeira na sexta-feira dos países islâmicos. Julga que isto pode marcar
um novo patamar?
Ivo Sobral: Poderá.
Mas existem muitas incongruências neste plano. Países que não são árabes, mas
terão obviamente interesse em tudo o que está a acontecer em Gaza, em
particular a Turquia e o Irão estarão presentes nessa mesma conferência. Mas o
jogo aqui é árabe, sem dúvida. Portanto, tudo o que poderá acontecer nessa
mesma cimeira terá, no fundo, pouco interesse para o que acontecerá em Gaza.
Provavelmente existirá uma oportunidade para estes mesmos dois países, a
Turquia, o Irão manifestarem o interesse em recuperarem, em reconstruir Gaza.
Provavelmente, inclusive poderão preparar algum pacote financeiro de ajuda.
Mas, politicamente, o Egipto, se este plano for para a frente ou alguma versão
futura deste plano, terá a totalidade dos dividendos políticos deste plano.
Portanto, só gostava de dizer que se calhar o elefante da loja, que é Israel,
não apoia este plano porque critica que não existe nenhuma denominação, nem
nenhuma característica do plano que fale do desarmamento do Hamas. Portanto, há
aqui um problema que Israel é bastante crítico em relação a este plano, porque
há aqui disputas muito grandes relativamente ao Hamas. Uns dizem que foi
desarmado, outros dizem que foi parcialmente desarmado. Poderá ser totalmente
desarmado no futuro, mas não existe nenhum plano específico que enquadre este
desarmamento do Hamas. Israel insiste muito no desarmamento imediato do Hamas e
a maioria dos países árabes, em particular a Jordânia e o Egipto, falam num processo
que progressivamente irá desarmar. Mas já existe aqui um contraste bastante
grave.
RFI: Israel diz que é contra este projecto,
lá está, porque quer aniquilar o Hamas e também porque considera que a Alta
Autoridade Palestiniana é corrupta. O que acha desse cálculo de Israel de
rejeitar tudo em bloco?
Ivo Sobral: Em
Israel, neste momento, a visão proposta por Israel é mostrar que tanto Gaza
como o West Bank (a Cisjordânia) é tudo basicamente igual. Portanto, há aqui um
desejo de unificar estas duas partes e demonstrar que as duas são incompatíveis
com os desígnios de Israel. Quando Israel aponta muitos deste pensamento como o
que aconteceu em Gaza anteriormente nos últimos dez anos, onde todas as outras
forças políticas que existiam em Gaza foram completamente aniquiladas pelo
Hamas. O Hamas provou ser sempre mais forte que qualquer força ou outra força
política palestiniana. E, basicamente, Israel não acredita que um processo de
desarmamento do Hamas possa sequer ser feito por outros palestinianos.
Portanto, há aqui uma clara incompatibilidade relativamente a isto. E isso é
algo que Benjamin Netanyahu já confirmou várias vezes nos seus discursos e é
aqui um grave problema para o futuro de Gaza. Portanto, choca aqui muito com
este plano egípcio que mete todo o ênfase num alegado conselho de tecnocratas
de "sábios" palestinianos que, independentemente iriam fazer a gestão
de Gaza e -não se sabe como- trabalhar na questão do desarmamento do Hamas.
Portanto, aqui, de facto, Israel, apesar da generalização, aponta para um grave
problema que ainda não foi sequer mencionado pelo Egito neste plano.
RFI: O cessar-fogo, que está em vigor desde
19 de Janeiro, está neste momento por um fio. A primeira fase terminou
oficialmente no dia 1 de Março. Era suposto começar nessa data a segunda fase,
que é marcada por um cessar-fogo permanente e a entrega dos últimos reféns.
Isto não aconteceu porque, entretanto, não houve sequer negociações e Israel
quer prolongar a primeira fase e não entrar nessa segunda fase mais decisiva.
Porquê a seu ver?
Ivo Sobral: Para
já, toda a operação de Gaza em si, toda a teatralização que foi feita pelo
Hamas, a entrega dos corpos dos reféns, assim como os reféns em si, provocou
bastante mal-estar no governo de coligação do primeiro-ministro Netanyahu. Os
conservadores criticaram Netanyahu por aceitar um acordo em que se estaria a
usar israelitas para promover politicamente o Hamas, assim como a toda esta
questão actual, porque todas as fronteiras de Gaza foram abertas. Entrou e
começou a entrar já a ajuda alimentar, assim como muitas máquinas e material de
construção. Isso já foi apontado imediatamente pelos israelitas como uma
situação em que se deve verificar exactamente onde vai ser utilizada esta
maquinaria e estes materiais de construção. Há aqui uma desconfiança mútua
inevitável para uma situação tão grave como esta, onde Israel basicamente não
pode confiar nunca no Hamas. E igualmente, o Hamas não pode confiar no que
Israel está a fazer aqui. Há uma quebra óbvia para as duas facções. Neste
momento há uma paralisia normal. Eu recordo também aqui que estamos no momento
do Ramadão e o Ramadão é um momento crucial que Israel pode utilizar
ulteriormente. Há aqui muita ajuda alimentar, inclusive aqui dos Emiratos, que
foi direccionada para Gaza, portanto, centenas de milhares de toneladas de
alimentos que simplesmente agora não vão entrar em Gaza. Está aqui outra
possibilidade para Israel para pressionar ulteriormente o Hamas e a população,
porque basicamente o Ramadão é uma festa mais importante para todos os
muçulmanos. E Israel pode usar esta falta de alimentos, toda esta questão
logística, como ulteriormente uma forma de pressão sobre o Hamas e sobre a
população de Gaza. Portanto, há aqui uma série de jogos que estão a acontecer
para terem o melhor acordo possível onde Israel possa ter mais reféns, assim
como o Hamas do outro lado, está a tentar ser o mais duro possível para não
libertar reféns e ter o máximo dos seus prisioneiros que ainda estão nas
prisões em Israel, assim como outros factores.
RFI: A seu ver, qual é o futuro imediato do
processo de paz? Para já, essa trégua e a mais longo prazo, esse plano que foi
apresentado ontem?
Ivo Sobral: É
muito difícil fazer previsões neste momento em todo o mundo em termos de relações
internacionais. Há aqui um factor novo, que é uns Estados Unidos bastante
instáveis politicamente e que impõem de uma maneira bastante agressiva os seus
pontos de vistas em todo o mundo. Especialistas em relações internacionais
começam a ter que repensar o que pode realmente acontecer e, em particular no
Médio Oriente, em Gaza, onde temos jogadores como Israel ou o Egipto, assim
como todo um outro grupo de países árabes com muitas opiniões diversas. Há aqui
uma espécie de repetição do que aconteceu nos anos 70, em particular antes dos
acordos de Camp David com o Egipto e os Estados Unidos, onde o mundo árabe era
basicamente um caos e que existiam muitas forças que lutavam entre si e que
somente nos Estados Unidos, mais agressivo, mais focalizado em encontrar uma
solução, naquele tempo, em 78/79, conseguiu consolidar este acordo de paz entre
Israel e o Egipto. Neste momento, infelizmente, eu creio que estamos reféns de
uma política norte-americana muito agressiva, que tem uma série de peças no
tabuleiro de xadrez que é o Médio Oriente, e que temos a impressão que os
próprios Estados Unidos não sabem o que vão fazer com estas mesmas peças. E
temos que aguardar. Muitas coisas estão a acontecer contemporaneamente,
cimeiras americanas e russas na Arábia Saudita, reuniões entre Israel, os
Estados Unidos ao mais alto nível, e o mundo árabe observa tudo o que está a
acontecer com uma grande preocupação, como é óbvio. E a maioria destas capitais
árabes está chocada com o que está a acontecer e basicamente espera pelo que os
Estados Unidos vão fazer e propor quase unilateralmente, para reagir. Este
plano egípcio para Gaza é uma tentativa de fugir a esta imposição. Mas o Egipto
não tem, como eu disse anteriormente, capacidade financeira para sequer
providenciar 5% destes 50 biliões de Euros propostos. E está totalmente
dependente da boa vontade dos outros países do Golfo, que somente estes têm a
capacidade financeira abundante para suportar este plano para Gaza. Mas
obviamente, estes países do Golfo irão esperar por Donald Trump em relação ao
que ele propõe para Gaza.ANG/RFI
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