quarta-feira, 31 de maio de 2023

                                   Angola/SADC entra em cena na RDC

Por Frederico Issuzo, jornalista da ANGOP

Bissau, 31 Mai 23 (ANG) – A Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC), de que Angola faz parte, decidiu instalar uma força militar, na conturbada República Democrática do Congo (RDC), para intervir na região leste do país.

A decisão foi tomada numa cimeira extraordinária da organização, realizada a 08 de Maio deste ano, na Namíbia, a poucos dias do fim do mandato da Força Regional da Comunidade dos Estados da África Oriental (EACRF, sigla em inglês).

O mandato da missão da SADC, que poderá ser a segunda intervenção militar do bloco sub-regional, no leste da RDC, desde 2013, será executado em coordenação com todas as demais forças, multilaterais ou bilaterais, já presentes no terreno, com destaque para a EACRF.

Contrariamente à EACRF, muito criticada por Kinshasa, por ser “inofensiva”, a missão da SADC foi projectada com “mandato ofensivo”, que autoriza o uso da força para impor a paz e a segurança no terreno sempre que necessário.

A ideia da sua criação surgiu numa conjuntura de fortes divisões entre as autoridades congolesas e a EACRF sobre a verdadeira missão atribuída à essa força regional.

Por via dessas desinteligências, a EACRF, comandada pelo Quénia, viu o processo de renovação do seu mandato envolto em incertezas, apesar de os demais países da região defenderem colectivamente a sua recondução.

Para piorar as coisas, o general queniano Jeff Mungai Nyagah, primeiro comandante dessa força, lançada em finais de 2022, demitiu-se de forma abrupta e “misteriosa”, para o espanto geral e de Kinshasa, em particular.

Ele foi imediatamente substituído pelo seu compatriota, general Aphaxard Muthuri Kiugu, por “decisão unilateral” do Presidente queniano, William Ruto, e contra a vontade de  Kinshasa, para quem a medida foi “precipitada”.

O Governo congolês diz que a saída “espectacular” de Nyagah aconteceu de surpresa, o mesmo para as razões alegadamente invocadas pelo general queniano, para justificar o abandono do seu posto a 27 de Abril de 2023.

Por isso, acrescenta, esperava uma consulta preliminar aos demais países participantes na EACRF, antes da nomeação do sucessor do general demissionário.

Nyagah ter-se-ia demitido das suas funções, invocando “ameaças à sua segurança pessoal, humilhação, tentativas de sabotagem da sua missão e campanhas negativas, orquestradas na imprensa” contra a sua personalidade, bem como “falsas acusações escritas” contra a EACRF.

À lista dos motivos da sua partida, Jeff Nyagah teria acrescentado “incumprimentos” pelo Governo congolês das suas obrigações financeiras previstas no Acordo sobre o Estatuto da Força (SOFA, sigla em inglês), documento que rege o funcionamento do contingente militar regional.

O pagamento dos salários do pessoal civil e outros encargos administrativos com o edifício sede da EACRF, em Goma, incluindo o alojamento dos oficiais da missão e as facturas de electricidade figuram entre tais passivos.

As supostas reclamações de Nyagah constam de uma carta amplamente divulgada na imprensa, supostamente da sua autoria, cuja autenticidade é rejeitada por Nairobi e pela Comunidade dos Estados da África Oriental (EAC).

O Governo queniano nomeou Nyagah para novas funções na hierarquia militar do país e catalogou a referida carta como “factícia” e de conteúdo “espúrio”, quando algumas entidades da sociedade civil local consideravam “difícil” aferir a genuinidade ou falsidade do documento.

Como resultado, adensou-se de tal forma a nuvem sobre a resignação do primeiro comandante da EACRF, que praticamente são desconhecidas, pelo menos oficialmente, as verdadeiras razões da sua partida de Goma.

“Plano B” de Tshisekedi

A pacificação do leste congolês é actualmente a principal aposta da agenda política  do Presidente da RDC, Félix Antoine Tshisekedi, que aspira à sua reeleição nas próximas presidenciais de Dezembro deste ano.

Por isso, considera-se um “suicídio eleitoral” para o Presidente Tshisekedi chegar ao próximo pleito “de mãos vazias”, ou seja, sem a prometida reposição da paz e segurança”, na martirizada região oriental do país.  

Com efeito, o fim da violência e o consequente retorno à paz e à estabilidade, nas províncias do Kivu-Norte, do Kivu-Sul e do Ituri, foi uma das grandes promessas de Tshisekedi, antes e depois de chegar ao poder, em 2018.

E o ressurgimento da SADC no xadrez congolês passou a ser encarado pela imprensa regional como um “autêntico Plano B” do estadista congolês, manifestamente agastado com o que chama de “ineficiência” da EACRF.

Tshisekedi congratulou-se com a solidariedade manifestada pelos países da SADC através da sua “decisão unânime” de desdobrar, na RDC, a sua força militar, que “já tem provas dadas em solo congolês”.

Acontece que a tensão com a EACRF acentuou-se de tal maneira que Tshisekedi ameaçou publicamente “expulsar” o contingente militar leste-africano, por alegado mau desempenho nos seus primeiros seis meses de mandato.  

Depois de resistir à recondução da EACRF, Tshisekedi condicionou a sua manutenção aos resultados da avaliação a ser concluída no termo do actual mandato, em Junho de 2023, sobre o desempenho geral da missão.

Durante uma visita oficial ao Botswana, em Maio deste ano, o líder congolês disse ainda que a força regional também pode deixar definitivamente o território nacional em caso de incompatibilidade com a futura missão da SADC.

Mesmo antes disso, a quebra de confiança mútua já estava reflectida na falta de consenso sobre o local da reunião para decidir sobre a recondução ou não da força regional, com a RDC a insistir que a mesma se realizasse em seu solo.

O Burundi tentou oferecer-se, em vão, para acolher o encontro, na sua qualidade de presidente em exercício da EAC, mas a proposta foi rejeitada por Kinshasa.

Mais precisamente, a RDC prefere que o assunto seja discutido, em Goma, cidade capital da província do Kivu-Norte, no leste do país e principal teatro das operações.

Esse quadro é demonstrativo de uma contradição estrutural que, desde o início, separava a RDC dos demais Estados-membros da EAC quanto à natureza do mandato da missão militar enviada pela organização sub-regional.

Kinshasa entende que essa missão só faz sentido com um “mandato ofensivo”, que a habilite a confrontar militarmente os grupos armados que desestabilizam o leste do  país, mormente o Movimento de 23 de Março (M23).

Na sua abordagem, as autoridades congolesas descartam terminantemente qualquer possibilidade de diálogo com os grupos armados visados, rotulando-os de “terroristas”.

Entretanto, os restantes países-membros da EAC sempre discordaram dessa visão, retorquindo que a força regional “não veio” à RDC para combater o M23 ou qualquer outro grupo, mas para “manter a paz” e facilitar o diálogo.

No meio dessa desavença sobre a natureza do mandato, o próprio contingente militar no terreno alinhou com a posição maioritária, que descarta a abordagem ofensiva, reconhecendo apenas a função de manutenção da paz.

Essas desavenças persistiram até ao final do mandato inicial de seis meses que devia, em princípio, ser renovado por igual período, em finais de Março de 2023.

Com o argumento de que a expedição oriental “não respondeu às expectativas”, o Governo congolês recusou a renovação plena, concedendo três meses adicionais contra os seis solicitados pelo secretário-geral da EAC, Peter Mathuki, numa espécie de  “segunda oportunidade”.

Como passo seguinte, virou-se para soluções alternativas com os olhos postos na África Austral, que, por sua vez, respondeu prontamente com a promessa de despachar uma força militar para o leste do país.

EACRF diz-se injustiçada

Entretanto, nunca ficou suficientemente claro o que realmente se terá passado, no terreno, quando tudo parecia devidamente acautelado nos instrumentos jurídicos que servem de base à actuação da força regional, incluindo o acordo saído da mini-cimeira de Luanda de 23 de Novembro de 2022.

Fazer cumprir os acordos de paz, proteger a população civil e “conter, derrotar e erradicar” as forças negativas, no país, são algumas das missões confiadas à EACRF no contrato assinado com a RDC.

Para complementar esse contrato, ou SOFA, a resolução saída da mini-cimeira de Luanda autorizou expressamente o uso da força pela EACRF para, em caso de resistência, agir contra qualquer grupo armados sem excepção.

Todavia, essa prerrogativa ficou condicionada a uma “luz verde” pontualmente concedida pelos chefes de Estado da EAC, sob proposta das chefias militares da região.

Aparentemente, a raiz das contradições entre os dois lados estará, sobretudo, no ângulo de leitura da situação no terreno em que o Presidente Tshisekedi acusa a EACRF de “coabitar” com o M23 “em vez de combatê-lo”. 

De forma peremptória, Tshisekedi diz haver “problemas de funcionamento” da EACRF, que “não cumpriu” o seu papel, observando-se nalgumas zonas “a coabitação entre os contingentes da força regional e os terroristas do M23”.

Para o estadista congolês, isso não estava previsto no programa, uma vez que o objectivo era obrigar o M23 a cessar-fogo, retirar-se das áreas ocupadas e acantonar-se.

Em sua defesa, a EAC considera “injustificadas” tais críticas, por entender que a situação no terreno não é a descrita por Tshisekedi e que seria “injusto” dizer que a EACRF “não fez nada em tão pouco tempo”.

Nas palavras do seu secretário-geral, Peter Mathuki, foram sim registados avanços no terreno, desde a chegada da EACRF, pois que “os violentos confrontos cessaram, os rebeldes estão a retirar-se, embora a um ritmo que talvez não seja o esperado”.    

O próprio general Nyagah sempre insistiu que as suas forças só podiam envolver-se em combates contra os grupos armados por orientação directa dos chefes de Estado da Comunidade da África Oriental.

Contra as críticas de ineficiência, o general queniano defende-se que houve “progressos significativos” no processo de retirada do M23 das áreas ocupadas, tal como estabelecidas no Plano de Paz de Luanda.

Segundo o mesmo, registou-se a “retirada total” do M23 das áreas de Sake, Kilolirwe e Kitchanga, e “retirada parcial” de Kibumba, Kiwanja, Rutshuru, Chengerero e Bunagana.

Acresce-se a esse “balanço positivo” do processo de retirada do M23 a “manutenção” do cessar-fogo como demonstração de que “estamos no bom caminho” para a restauração da paz e o regresso das populações deslocadas às suas áreas de origem.

Todas essas ocorrências foram confirmadas pela EAC,  pelo Mecanismo Ad hoc de Verificação e pelo Mecanismo de Verificação Conjunta Alargada, antes da sua comunicação em relatório ao Governo congolês e aos facilitadores dos processos de Nairobi e de Luanda, disse.  ANG/Angop

 

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