sexta-feira, 5 de maio de 2023

Sudão/ Amigos de ontem inimigos de hoje     “Por Frederico Issuzo,da ANGOP”                                                   

Bissau, 05 Mai 23 (ANG) – Depois de sistemáticas crises no Leste da República Democrática do Congo (RDC), cuja resolução conta com forte empenho das autoridades angolanas, a União Africana (UA) acaba de confrontar-se com mais um duro desafio: apaziguar o Sudão.

A organização, que busca por soluções duradouras para pôr fim ao conflito entre a RDC e o Rwanda, tem agora sobre a mesa o dossier Sudão, país onde paira uma ameaça de nova guerra civil, de consequências imprevisíveis.

A poucos dias do 60.º aniversário da sua fundação, a organização pan-africana, criada a 25 de Maio de 1963, vê crescer o mapa de zonas turbulentas no continente, realidade que desafia a sua autoridade e capacidade de influência.

A virulência dos combates nas ruas da capital sudanesa, Cartum, iniciados a 15 de Abril deste ano, já provocou um número assustador de vítimas, com altos fluxos de refugiados contabilizados, diariamente, em direcção aos países vizinhos.

Isso obrigou a evacuação geral daquele país de diplomatas e cidadãos estrangeiros de quase todas as nacionalidades, num cenário caótico e de pânico generalizado.

Em menos de duas semanas, os confrontos fizeram mais de 500 mortos e quatro mil feridos, enquanto dezenas de milhares de pessoas abandonaram o país.

As projecções da ONU apontam para cerca de 800 mil refugiados esperados nos Estados vizinhos, depois dos mais de 100 mil já chegados a países como o Sudão do Sul, o Tchad, a Etiópia, o Egipto, a Eritreia e outros.

No centro da disputa estão o actual chefe de Estado de facto, Abdel Fattah al-Burhan, e o seu adjunto Mohammed Hamdan Dagalo “Hemetti”, que num passado recente se juntaram para destituir o Presidente Omar al-Bashir.

Burhan e Hemetti são dois generais aliados que se desentenderam sobre a condução do processo de  transição gerado pelo golpe de Estado militar de 2019 contra o regime de Omar al-Bashir, o seu mentor comum. 

Chefe máximo das Forças Armadas Sudanesas (FAS), o general Burhan preside à Junta que governa actualmente o Sudão, enquanto Hemetti, seu vice, lidera as Forças de Apoio Rápido (RSF, sigla em inglês), poderosa milícia herdeira do grupo Janjawid de Darfur. 

O pomo da discórdia teria sido uma tentativa de Burhan de dissolver as RSF para a sua integração no Exército regular, o que Hemetti não via com bons olhos.

Este último estaria a recear a perda eventual da sua influência política proporcionada, em parte, pelo poder econômico conquistado à frente desta milícia criada por Bashir e detentora de um vasto património financeiro.

Para Hemetti, a espoliação dos recursos económicos e financeiros das RSF e o seu afastamento dos corredores do poder seriam os verdadeiros objectivos do projecto integracionista fomentado por Burhan.

Apercebendo-se deste “perigo iminente”, Hemetti ter-se-ia adiantado no terreno, fazendo transportar sorrateiramente as suas tropas para Cartum e abrir as hostilidades.

Com cerca de 46 milhões de habitantes e uma área de 1,8 milhão de quilómetros quadrados, o Sudão é hoje o terceiro maior país de África, em termos de superfície, depois da Argélia e da RDC.

Já foi o país mais vasto do continente africano antes da secessão do sul, em 2011, na sequência de um referendo organizado de 9 a 15 de Janeiro do mesmo ano.

Omar al-Bashir governou o Sudão de 1989 a 2019, antes de ser derrubado pelos militares sob as ordens de Barhan e Hemetti, em 11 de Abril de 2019, durante uma revolta popular provocada pela subida do preço do pão.

A revolução começou, em 19 de Dezembro de 2018, com  manifestações de rua para protestar contra tal aumento, numa altura em que o país enfrentava uma hiperinflação que atingira os 70 por cento.

Os manifestantes passaram a exigir a partida de Bashir, que, entretanto, se recusava a deixar o poder, permitindo a repressão violenta dos protestos, até 11 de Abril de 2019, quando as chefias militares ordenaram a sua prisão.

Mas a detenção de Bashir não bastou para pôr fim aos protestos de rua, porque os manifestantes passaram a exigir que os militares entregassem o poder aos civis.

Depois do “Massacre de Cartum”, em que morreram mais de 100 pessoas na repressão dos protestos, em 3 de Junho do 2019, uma aliança dos grupos organizadores das manifestações assinou com os militares um Acordo Político de Transição e um Projecto de Declaração Constitucional.

Foi então criado um Conselho de Soberania integrado por civis e militares, como principal órgão do Estado coadjuvado por um primeiro-ministro na pessoa de Abdalla Hamdok, um economista de 61 anos e antigo funcionário das Nações Unidas.

Mas, em 25 de Outubro de 2021, os militares detiveram os integrantes civis do governo de transição, incluindo Abdalla Hamdok, num golpe de Estado liderado por Burhan, que em seguida declarou Estado de Emergência.

Este acto pôs fim ao acordo de partilha de poder entre os militares e os civis e que devia desembocar na organização de eleições em finais de 2023.

Cerca de um mês antes, o governo do primeiro-ministro Hamdok havia denunciado uma tentativa de golpe orquestrada pelos militares, o que levou à detenção de 40 elementos das Forças Armadas.

Hamdok viria a ser reconduzido ao seu posto, em 21 de Novembro de 2021, na sequência de um acordo político assinado por Burhan, para devolver a transição a um governo civil e libertar todos os presos políticos detidos durante o golpe.

Em 2 de Janeiro de 2022, Hamdok anunciou a sua demissão do cargo de primeiro-ministro, na ressaca de uma das mais mortíferas manifestações de rua em que foram detidas mais de mil pessoas, incluindo 148 crianças, por contestarem contra o golpe de Estado.

Em finais de 2022, iniciaram-se negociações com mediação internacional para um novo plano de devolução da transição aos civis, cujos termos e condições expuseram as divergências entre Burkan e Hemetti que degeneram nos violentos confrontos iniciados a 15 de Abril de 2023. 

Tentativas de negociações indirectas entre Hamdok e os militares para a libertação dos prisioneiros políticos e restaurar a partilha do poder foram sem sucesso.

O novo conflito sudanês nasce numa altura em que África  tem profundas crises políticas ainda por resolver, no Mali, no Burkina Faso e na Guiné-Conakry, entre outros, sem falar da secular hipertensão diplomática entre o Rwanda e a vizinha RDC.

No Mali e no Burkina Faso, uma sucessão de golpes de Estado, iniciada em 2020, foi justificada pelos militares por uma alegada incapacidade dos poderes então destituídos para erradicar o terrorismo jihadista que semeava terror e insegurança entre as populações do Sahel.

Até França, antiga potência colonial, pagou as favas com a perda para a Rússia dos privilégios da cooperação bilateral e a saída compulsiva das suas tropas antes estacionadas nos dois países para ajudar a combater o jihadismo.

Por seu turno, os militares na Guiné-Conakry invocaram má governação e desrespeito aos princípios democráticos para derrubar Alpha Condé, a 5 de Setembro de 2021, após a sua controversa reeleição para um terceiro mandato. 

E tanto no Mali quanto no Burkina Faso, acalentou-se esperanças de um regresso rápido à paz e à estabilidade, quando os militares proclamaram a sua determinação de fazer da segurança o objectivo principal da sua acção.

Às sanções impostas pela União Africana e por organismos sub-regionais, incluindo a suspensão das instâncias internacionais e embargos económicos e financeiros, os militares responderam com indiferença e desprezo, depois de várias tentativas fracassadas de mediação.

Hoje, decorridos três anos desde então, quase nada mudou. Pelo contrário, há uma tendência geral de agravamento da situação, com uma nova onda de ataques ou atentados mortíferos contra alvos civis e militares.

Os últimos desenvolvimentos no terreno confirmam que os militares não foram capazes de reverter a tendência da insegurança crescente e o futuro continua incerto.

Os ataques armados continuam a ceifar vidas de civis e soldados malianos e burkinabes, ao passo que Conakry está a braços com um descontentamento popular generalizado por falta de electricidade.ANG/Angop

 

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