Cabo Verde/”Cabral promovia igualdade de género, mas sempre
houve resistência”,diz Lilica Boal
Bissau,05 Ago 24(ANG) – Lilica Boal, professora na luta de
libertação, ao lado de Amílcar Cabral, diz que a alfabetização de mulheres à
hora de preparar o jantar incomodava os homens, sobre o projecto que retomou no
regresso a Cabo Verde nos anos 1980.
“Quando viemos para aqui [Cabo Verde] começámos a trabalhar na
alfabetização”, conta a antiga directora da escola-piloto do Partido Africano
da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), uma das mulheres escolhidas por
Cabral para lugares de chefia, ao promover a igualdade de género.
No ano em que se celebra o centenário do nascimento do líder das
independências dos dois países, Maria da Luz Boal – mais conhecida como Lilica
– recorda, em entrevista à Lusa, o convívio com a figura histórica e refere
que, ainda hoje, há “lutas inacabadas” – quanto ao género e à maneira como a
história cabo-verdiana é ensinada
Após o golpe de Estado de 1980, em Bissau, que pôs fim ao
projecto de união dos dois países, Lilica Boal regressa às ilhas onde nasceu
(Tarrafal de Santiago, 1934), continuando a trabalhar no setor público da
educação.
As desigualdades de género estavam presentes, assim como o
analfabetismo.
“Quando organizávamos reuniões com as mulheres, os maridos
reclamavam: agora na hora de se fazer o jantar é que a Organização das Mulheres
de Cabo Verde (OMCV) se lembra de vir alfabetizar”, questionavam.
Uma recordação hoje acompanhada com uma gargalhada, mas que
serve para ilustrar a resistência à igualdade de género – mesmo depois de o
líder das independências pregar que a luta de libertação face à ditadura
colonial portuguesa também dependia das mulheres.
“Não era comum, mas ele [Cabral] já tinha na cabeça o problema
do género”, refere Lilica, como quem vai descrevendo os traços marcantes de uma
personalidade que ela própria foi descobrindo.
“Não era um homem qualquer” e isso percebia-se “logo na maneira
de falar”.
Mesmo que lentamente, a igualdade de género tem progredido, mas
a antiga directora da escola-piloto tem uma opinião: “Acho que podemos
[mulheres] fazer muito mais ao nível da base do que estando lá em cima”, em
cargos de maior poder e aponta para aquele trabalho de base, de alfabetização,
como exemplo.
Lilica Boal enfrentou as desigualdades, de género e não só,
desde cedo.
Ainda era criança, no Tarrafal, quando lhe ficaram gravadas na
memória as imagens duras da fome no norte da ilha de Santiago.
“Estávamos à mesa e estava um miúdo à porta, com uma casca de
coco, a pedir comida. Para mim, era duro ver uma criança da minha idade naquela
situação. Isto foi muito importante no percurso da minha vida, marcou-me
profundamente”, relata, recordando a casa dos pais, comerciantes, célebres pelo
apoio à comunidade e aos presos políticos do campo de concentração do Tarrafal.
As imagens da infância encaixaram-se no resto do percurso que a
levou à Casa dos Estudantes do Império, em Lisboa, como uma força que, em 1961,
a fez virar costas a uma vida universitária, em Portugal, para arriscar a vida
com um grupo em fuga (clandestina) para a luta de libertação – relatada e
documentada na Internet.
Hoje, perante as comemorações do centenário de Cabral, Lilica
Boal mostra-se otimista quanto à preservação do legado histórico, apesar de
achar que as actividades que têm decorrido mereciam mais relevo: “fazemos
muito, mas ainda estamos longe”.
“Chamam-nos para ir falar sobre a luta aos liceus, falar sobre
Cabral. Portanto, há uma vontade. Começa a haver mais interesse em conhecer o
passado”, refere à Lusa.
A antiga directora e professora da escola-piloto do PAIGC
enaltece sobretudo as atividades nas ruas, sempre que há motivos para o povo
sair, porque “é aí que [a população] mostra o seu descontentamento”.
“Não é ao sentar-se na assembleia [parlamento] a ouvir o
discurso deste ou daquele partido, do que fez um ou o outro. Não é essa guerra
[política] que interessa, mas é o povo na rua, a cantar, saltar ou a mostrar
que tem isto ou aquilo”, conclui.
Amílcar Cabral celebraria 100 anos a 12 de Setembro de 2024,
decorrendo actividades em diferentes países para assinalar a efeméride.
Em Cabo Verde, várias comemorações estão associadas à Fundação Amílcar Cabral e incluem um colóquio internacional sobre o líder histórico, a realizar em Setembro, como ponto alto do programa. ANG/Inforpress/Lusa
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