RDC/Governo e M23 anunciam querer “trabalhar para concluir
uma trégua” – O que mudou?
Bissau, 24 Abr 25 (ANG) - O governo da
República Democrática do Congo e o grupo rebelde M23 publicaram, quarta-feira, pela primeira vez, uma
declaração conjunta na qual dizem querer “trabalhar para concluir uma trégua”.
Sérgio Calundungo, coordenador do
Observatório Político e Social de Angola, considera que se trata de “uma boa
notícia” e que talvez seja o “prelúdio de que as partes directamente envolvidas
no conflito se venham sentar à mesa”, mas avisa que não foram dadas garantias
de que esta trégua não seja violada como tantas anteriormente anunciadas.
"Após discussões francas e construtivas, representantes da
República Democrática do Congo (RDC) e do AFC/M23 concordaram em trabalhar para
a conclusão de uma trégua", anunciaram o M23 e o governo da RDC em uma declaração conjunta
transmitida, esta quarta-feira, pela televisão nacional congolesa e pelo
porta-voz do M23.
O comunicado acrescenta que "ambas as partes reafirmam o seu compromisso com a cessação
imediata das hostilidades", algo que pretendem respeitar "durante toda a duração das negociações
e até sua conclusão".
Esta é “realmente
uma boa notícia”, considera
Sérgio Calundungo, coordenador do Observatório Político e Social de Angola,
notando “talvez significar a
compreensão das partes de que os conflitos ou as divergências que têm não podem
ser resolvidas pela via da violência armada”.
O problema é que o texto não especifica se esse compromisso de
interromper os combates no leste da RDC e negociar uma trégua permanente
constitui uma declaração de princípios ou se será formalizado imediatamente.
Algo também constatado por Sérgio Calundungo que guarda o lado optimista do
anúncio, mas deixa reservas: “Quando se está no desespero, há uma ténue
luz, porque até há bem pouco tempo não se falava sequer da oportunidade de
conversações. Houve uma série de tentativas de pôr as partes a dialogar e, face
às dinâmicas do conflito no terreno, ao eclodir da guerra, não havia nem sequer
isto. Então, pode ser que seja o prelúdio de alguma tentativa de que as partes
directamente envolvidas no conflito se venham sentar à mesa. É claro que o
cessar-fogo e a disponibilidade para o diálogo é uma condição necessária, mas
não é suficiente. Têm de acontecer outras questões.”
Quais as outras questões, então? Basicamente, “há muitos interesses económicos por detrás
disto”, lembra
o analista, falando em “instrumentalização
política da desordem”. De
facto, o leste da República Democrática do Congo, que faz fronteira com o
Ruanda, é uma região rica em recursos naturais e minerais. Ruanda é acusada
pela RDC de usar o M23, liderado por tutsis, para saquear as riquezas dessa
região, mas Kigali nega e diz que a RDC aí protege um grupo armado criado por
hútus ruandeses, as Forças Democráticas de Libertação do Ruanda, responsáveis
pelo genocídio de tutsis em 1994. O leste da RDC é assolado por conflitos
justamente há 30 anos, mas o M23 ressurgiu no final de 2021 e a crise
intensificou-se nos últimos meses com o avanço do grupo armado para as cidades
de Goma e Bukavu, na fronteira com o Ruanda.
“Há muitos interesses económicos por detrás disto. Era importante que
também estes interesses fossem ou neutralizados ou, pelo menos, que se desse a
transparência entre eles e dizer ‘Ok, podemos continuar a ter interesses
económicos nessa região, mas vamos explorá-los num contexto de paz, não
necessariamente a violência como um recurso para a melhor exploração dos
minerais que existem na região’. Isto é que são as causas profundas do
conflito. Tudo o resto, os avanços do M23, os discursos mais empolados, eu
diria que são as causas dinâmicas, mas não necessariamente as causas profundas
do próprio conflito. E é isto que ainda não se vislumbra: uma discussão à volta
das grandes causas profundas que estão enraizadas naquela sociedade e
quepermitem que o conflito tenha chegado a estes níveis”, acrescenta Sérgio
Calundungo.
O que é que muda com este anúncio inesperado desta quarta-feira,
em que os dois lados "concordam em trabalhar para a conclusão de uma
trégua", reafirmam “o seu compromisso com o fim imediato das
hostilidades" e dizem que o cessar-fogo permanecerá em vigor até a
conclusão das conversações?
Até agora e desde o ressurgimento do M23 no final de 2021, o
Presidente da RDC, Félix Tshisekedi, recusava negociações directas com o M23 e
o seu braço político (AFC/M23). O que mudou para ele agora aceitar? Para Sérgio
Calundundo, Félix Tshisekedi mostra um “reconhecimento
implícito do poder de força que o M23 obteve” e admite que agora é “parte
da solução do conflito”.
“Eu creio que tardiamente, Tshisekedi percebe que o poder da força
que tem não é tanto para conter o M23 e também vai percebendo que não vai
encontrar uma saída pela via militar. Ou seja, de certa forma, por detrás dessa
disponibilidade de conversação, há o reconhecimento implícito do poder de força
que o M23 infelizmente obteve. E digo ‘infelizmente’ na óptica da população
daquela região. O M23 se agigantou nos últimos anos, fruto da negligência que
as próprias autoridades congolesas foram dando ao problema. Antes, não passavam
de forças negativas a quem havia de marginalizar na busca de solução, hoje, há
a perceção de que se eles são parte do conflito, então automaticamente passam a
ser parte da solução do conflito”, sublinha o nosso
convidado.
Sérgio Calundungo relembra, também, que “muita coisa mudou desde a entrada do Qatar” como mediador das negociações,
aparecendo como “equidistante”, o que não acontecia, a seu ver, com
Angola que “em determinados momentos
teve uma posição firme, inequívoca, provavelmente ao abrigo daquilo que diz a
União Africana em
favor de uma das partes”. A favorecer a aparente eficácia do Qatar
estarão, eventualmente, “outro tipo de promessas ou factores que não
são conhecidos”,
quanto mais não seja simplesmente “o melhorar a sua imagem como um país com
forte influência na arena mundial”.
Haverá, ainda, interesses económicos em causa? Recorde-se que o
Qatar investiu já mais de mil milhões de dólares num futuro hub aeroportuário
perto de Kigali e também se comprometeu em modernizar as instalações portuárias
e aeroportuárias na RDC. Sérgio Calundundo admite que isso coloca o Qatar numa “posição
de parceiro forte”, com o
qual, no futuro, se pode “estabelecer
relações económicas fortes e atrair investimentos para o território”.
A 24 de Março, o Presidente angolano, João Lourenço -que
liderava a mediação desde 2022 - anunciou o abandono dessa mediação, uma semana
depois do encontro entre os presidentes congolês, Félix Tshisekedi, e ruandês,
Paul Kagame, em Doha, a 18 de Março, dia em que Luanda deveria acolher a
primeira ronda de conversações directas com o M23. Entretanto, no início de
Abril, o Presidente do Togo, Faure Gnassingbé, foi oficialmente designado como
novo mediador da União Africana para o conflito no Leste da RDC, sucedendo a
João Lourenço. Paralelamente, as conversações teriam começado em Doha, em Abril,
mas ainda não havia nenhuma comunicação oficial de ambas as partes. Será que,
em um mês, o Qatar conseguiu o que Angola tentava desde 2022? Sérgio Calundungo
responde assim: “Como
numa partida de futebol, o árbitro não deve ser o mais visível, mas sim aqueles
que estão a disputar. O Qatar está numa posição de arbitragem”.
Estendendo a metáfora do futebol, se “prognósticos só no fim do
jogo”, até que ponto esta promessa agora é plausível quando, desde o final de
2021, houve mais de meia dezena de tréguas que foram assinadas e depois
violadas?
“As pessoas mais cépticas perguntam o que é que há de diferente nessa
trégua de cessar-fogo em relação a outra. Honestamente, ninguém vê grandes
diferenças. Há mais um esforço negocial, há o reconhecimento de que o M23 já
não é aquela força residual, aquelas forças negativas, mas sim um parceiro
negocial. Isto claramente é diferente, mas não há grandes novidades em relação
a qual é a garantia que temos que desta vez o cessar-fogo se vai cumprir.
Independentemente de quem seja o medianeiro, eu queria valorizar a hipótese de
nunca se abandonar a mesa de diálogo. Eu sei que estes acordos, às vezes, levam
muito tempo - na nossa experiência de Angola, foram feitos vários acordos de
cessar-fogo e muitos deles inesperadamente violados. Então, é preciso fazer
esses anúncios, mas também comunicar as garantias de por que é que agora vai
ser diferente. E isto não é muito claro no meu ponto de vista”, conclui Sérgio Calundungo. ANG/RFI