França/UNESCO reconhece arquivos sobre a escravatura
em Cabo Verde
Bissau, 23 Abr 25
(ANG) - O projecto "Documentos sobre a Escravatura nos Arquivos da
Secretária-geral do Governo de Cabo Verde - 1842-1869" foi reconhecido na
edição de 2025 do programa da UNESCO, que visa preservar o património
documental da humanidade.
Em entrevista à RFI, o teólogo e historiador
cabo-verdiano Jairzinho Lopes Pereira afirma que esta distinção é o
reconhecimento do trabalho realizado pelo Ministério da Cultura e pelo
Instituto do Arquivo Nacional de Cabo Verde, sublinhando ainda que estes
documentos desempenham um papel fundamental na preservação da memória da
escravatura.
O que representa este reconhecimento da
UNESCO para Cabo Verde?
Trata-se do reconhecimento da UNESCO pelo
trabalho que tem sido feito pelo Ministério da Cultura e das Indústrias
Criativas, em Cabo Verde, através do Instituto do Arquivo Nacional de Cabo
Verde, no sentido de promover a preservação do espólio documental, que é de
grande importância.
Um segundo aspecto diz respeito ao
reconhecimento do valor — não só científico, académico, cultural, mas também
patrimonial — que a UNESCO atribui a este Fundo da Secretaria-Geral do Governo,
relativo à escravatura.
Há um terceiro elemento que gostaria de
realçar, que tem a ver com o estímulo, pois tenho a certeza de que, após este
reconhecimento, os documentos do Fundo passarão a ser mais conhecidos.
Este arquivo é constituído por quantos
documentos e em que estado se encontram?
Não posso dar detalhes precisos dos números.
Sei que são quatro caixas, com muitos livros, manuscritos e também documentos
avulsos.Trabalhei pessoalmente neste Fundo e o que posso dizer é que são
registos de grande importância para o estudo da escravatura na zona do
Atlântico, sobretudo no caso de Cabo Verde.
Como sabe, existiu na Cidade Velha, [na ilha
de Santiago] um entreposto de grande importância no que toca ao tráfico
transatlântico. Portanto, acho que o reconhecimento vem mesmo a calhar e é
totalmente merecido.
Qe importância têm estes documentos para a
preservação da memória, nomeadamente da memória da escravatura em Cabo Verde?
Têm uma importância enorme. A diversidade dos
documentos remete para a quantidade e variedade de informações ali presentes.
Depois, há um outro aspecto, uma vez que temos, nestes documentos, um conjunto
de realidades díspares e até divergentes que são importantes para perceber a
questão da memória e da preservação. Primeiro, estamos a falar de duas fases
distintas — no século XVII até ao século XVIII, temos um período em que a
escravatura está em vigor, em que os movimentos abolicionistas ainda são
tímidos. Mas depois, no século XIX, sobretudo após a abolição da escravatura na
Grã-Bretanha, ou na Inglaterra, surge a questão da pressão inglesa sobre as
outras colónias, no sentido de também avançarem com a abolição da escravatura.
É aí que entra o caso português e a Comissão
Mista instalada na Boavista, que surge na sequência de um tratado assinado
entre Portugal e Inglaterra, em 1842, com vista à abolição progressiva da
escravatura nas colónias portuguesas.
O que traz de novo essa informação?
Permite-nos, por exemplo, perceber como é que
a Inglaterra, através da Marinha, desenvolvia todo um conjunto de acções não só
para pressionar, mas também para vigiar. Dispomos das correspondências dos
cônsules, dos representantes da Foreign
Office na Boavista, informações sobre como os portugueses
violavam constantemente o Tratado de 1842.
Dispomos, igualmente, de um conjunto de casos
de violência contra escravos libertos que são relatados à Foreign Office em
Londres e também nos permite comparar as informações desta parte da Comissão
Mista, com uma outra comissão que se instalou em Cabo Verde: a Junta Protectora
de Escravos e Libertos de Cabo Verde.
Para além de permitir a preservação da
memória, estes novos dados vão permitir aos investigadores actualizarem a
história?
Actualizar a historiografia, sim. Mas também
temos de nos lembrar que este Fundo já existia há algum tempo. Porém, isto vai
permitir um tratamento mais adequado, actualizar a produção historiográfica
nesta matéria e também possibilitar novas análises, tendo em conta um conjunto
de informações que muitos investigadores poderão não ter tido o cuidado de
explorar devidamente.
Quando fala desse conjunto de informações,
refere-se, por exemplo, aos nomes, ao sexo e ao local de nascimento dos
escravos?
Refiro-me, sobretudo, a dados que têm a ver
com o tratamento dos escravos, com questões de masculinidades, com a violência
praticada sobre os escravizados.
Falo sobre a rotina diária dos escravos,
sobre os registos de baptismo, e sobre as informações que constam nas cartas de
missão ou nas chamadas cartas de alforria.Refiro-me ainda, por exemplo, à
informação sobre a religiosidade e a espiritualidade dos escravos.
Portanto, um conjunto de elementos que nos
permitem reconstruir a realidade da escravatura em Cabo Verde.
Dados importantes para o estudo da
escravatura no país…
Evidentemente. Até porque, em Cabo Verde, não
temos propriamente nenhum estudo actualizado e sistemático sobre a escravatura.
Parece difícil de acreditar, mas o último grande estudo sistemático e detalhado
que temos sobre a escravatura é da autoria do historiador António Carreira.
Urge actualizar o estudo da escravatura e com
toda a importância que este tema assume na História, Cabo Verde não tem tido a
atenção que merece por parte dos académicos.
Este reconhecimento da UNESCO poderá ser um
novo incentivo?
Acredito que sim. Eu já estudei a questão da
escravatura em Cabo Verde, mas sobretudo através de artigos especializados
sobre temas específicos — mais relacionados com a missionação, com a história
eclesiástica, com o baptismo dos escravos, com a violência colonial. Mas há
muitos outros aspectos que podem ser estudados e que ainda não o foram.
Esta distinção pode contribuir para que se
avance nos movimentos de reparação?
Evidentemente. Hoje há já um renovado
interesse em torno da questão da violência colonial, sobretudo em relação aos
movimentos de reparação pelas barbaridades cometidas durante o período
colonial. Ainda há dias houve uma reunião. em Nova Iorque, nas Nações Unidas,
promovida por um grupo de descendentes de africanos que estão a explorar esta
questão das reparações.
Há todo um movimento internacional e acho que
estes Fundos devem servir de base de estudo e preparação para fazermos um
trabalho mais sério e mais objectivo nesta luta pelas reparações.
A Unesco reconheceu ainda a candidatura conjunta dos livros e registos de escravos entre Angola, Moçambique e Cabo Verde. "Recenseamento de escravos em Angola, Cabo Verde e Moçambique determinado por decreto português de 14/12/1854". Trata.se de um projecto com 79 livros de registo de escravos nestes trés países, criados principalmente entre 1856 e 1875. A Unesco afirma que estes registos são sobre "uma época em que a escravidão tinha oponentes em todo o mundo" e que esses livros "forneciam registos detalhados, incluindo nomes, sexo, local de nascimento, idade, características físicas, ocupações e informações sobre proprietários de escravos".ANG/RFI

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