Desafios à Zona
de Livre Comércio Africana
Por Lúcia Muzell
Bissau, 12 jul 19 (ANG) - A
assinatura do acordo de criação da Zona de Livre Comércio Continental Africana
(Zlec) foi considerada um marco “histórico” pelos 54 países signatários, que
comemoraram o êxito dos quatro anos de negociações no último domingo (7).
No entanto, a concretização
do sonho de abrir o maior bloco comercial do mundo ainda está distante – falta
de infraestruturas, disparidades regionais e concorrências internas são as
maiores barreiras para que o projeto saia mesmo do papel.
O mais comum é um país ser forte em uma determinada produção –
mas não encontrar mercado nem nos próprios vizinhos. Isso acontece quando uma
região toda se concentra em um mesmo produto, em geral matérias-primas, ou
quando um país não tem condições de importar produtos sem valor agregado, como
o café do Quênia ou o algodão do Mali, por não dispor de indústria de
transformação.
“Muitas vezes, é mais fácil importar ou comercializar um produto
de outro continente, como Europa, Ásia ou até dos Estados Unidos, do que
comercializar de um país africano para o outro. Essa dificuldade é uma das
grandes virtudes que esse acordo de livre comércio preconiza”, explica João
Bosco Montes, presidente do Instituto Brasil-África (Ibraf), entidade que
promove a aproximação entre Brasília e o continente africano.
A imensa heterogeneidade entre os países tanto em desenvolvimento quanto em política
monetária e fiscal, também é um empecilho. O continente já é dividido em cinco
zonas comerciais – o oeste africano chega a ter uma moeda única para facilitar
as transações. Ao mesmo tempo, as economias compartilham uma deficiência grave
de infraestruturas.
“O Marrocos não é igual à África do Sul, que não é igual ao
Quênia, que não é igual à Namíbia. Além disso, como as mercadorias vão circular
de um lugar para o outro? Existe um grande problema de logística: não há formas
de escoamento das produções de um lugar para o outro”, observa Bosco Monte,
pós-doutor em Relações Internacionais. “A base industrial na maioria dos países
ainda é frágil, porque falta infraestrutura. Não tem energia elétrica para
ligar as máquinas para que elas possam produzir.”
Nesse cenário desfavorável, o professor de economia
senegalês Gervasio Semedo, da Universidade de Tours, na França, avalia que,
inegavelmente, o acordo é uma grande conquista para o continente . Para
ele, a harmonização das tarifas será o passo mais complexo.
“Os países pertencem a várias formas de integração
regional, tanto monetárias quanto reais, e tudo isso vai precisar ser
esclarecido. Vai ser necessário criar condições de convergência das economias,
para poder acelerar o comércio”, avalia Semedo. “Sem contar a particularidade
histórica, de que a África foi colonizada. Desde 1885, diversas empresas da
França, Reino Unido, Portugal, Espanha e da Alemanha, numa menor medida,
implementaram um fracionamento da África, que desde então ficou voltada para
esses países colonizadores”, lembra o professor.
Se a Zlec for mesmo implementada, poderá colocar o continente na
rota de tratados internacionais ainda maiores, com a União Europeia ou o Mercosul.
Semedo avalia que, na economia globalizada, os pequenos espaços comerciais saem
muito prejudicados.
“É a continuidade do espírito multilateral que prevalece. É
melhor ter espaços abertos do que espaços fechados em si, que geram conflitos”,
destaca Semedo. “A África está preparada? Como todos os outros espaços
comerciais no início, não. Há uma necessidade profunda de transformação
estrutural na África. Os países precisam ter uma visão estratégica das coisas,
se abrindo mas aplicando proteções inteligentes, para viabilizar a emergência
de indústrias e se beneficiar de uma economia de escala internamente”, afirma o
especialista, que sublinha ainda que “chegou a hora” de a África se abrir para
outros continentes, como as Américas.
Bosco Monte ressalta o imenso potencial da região,
onde se encontram algumas das mais altas taxas de crescimento econômico do
mundo. Ele compara o momento atual africano aos países do Cone Sul nos anos
1970 – a produção agrícola na savana ou no semiárido africanos podem se desenvolver
tal como aconteceu no Cerrado brasileiro, nas últimas décadas.
As empresas internacionais, observa, já perceberam
esse potencial há muito tempo. O presidente do Ibraf lamenta que, por questões
políticas, o Brasil tenha se afastado cada vez mais da África, até chegar à
ruptura atual.
“Enquanto o governo não faz a sua parte e não
contribui, as empresas ficam acanhadas. Isso não é uma prerrogativa do
empresário brasileiro: o francês, o americano ou o japonês também têm isso”,
frisa Bosco Monte. “Só que eles têm a decisão tácita de levar consigo as marcas
dos seus países e investem uma quantidade generosa de recursos para que as
marcas se consolidem. O Brasil não tem essa política.”
A Zona de Livre Comércio Continental Africana engloba
1,2 bilhão de consumidores – que saltarão para 2,5 bilhões nos próximos 30
anos. Atualmente, apenas 17% das matérias-primas e produtos africanos são
vendidos dentro do próprio continente.ANG/RFI
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