Sudão do Sul/ "O problema principal neste momento, são as milícias"
Bissau, 23 Set 25 (ANG) - O ex-vice-presidente do Sudão do Sul, Riek Machar, acusado de "crimes contra a Humanidade", comparece desde esta segunda-feira perante a justiça do seu país no âmbito de um julgamento cuja legalidade é contestada pelos seus advogados e pelos seus apoiantes que denunciam "motivações políticas", num contexto de eterna guerra fratricida com o seu mais directo adversário, o Presidente Salva Kiir.
Detido em regime de prisão domiciliar há mais de sete meses por
estar alegadamente por detrás de um ataque cometido a 3 de Março por milícias
chamadas de "Exército
Branco" em Nasir, no nordeste do país, em que
morreram mais de 250 militares, uma alta patente do exército assim como um
piloto das Nações Unidas, Riek Machar enfrenta a justiça juntamente com sete
outros réus acusados de "assassinato",
"terrorismo" e "conspiração".
Este julgamento decorre numa altura em que se observa um aumento
substancial da tensão num país que desde a sua independência em 2011, raramente
conheceu momentos de serenidade, tendo sido palco de uma guerra civil que
causou mais de 400 mil mortos entre 2013 e 2018.
Em 2020, a assinatura de um acordo de paz entre Riek Machar e o
Presidente Salva Kiir para a partilha do poder, abriu uma página de esperança
que parece agora estar a fechar-se, com os apoiantes de Riek Machar a lançar
apelos para uma mobilização no sentido de se derrubar o regime, sendo que já se
registam confrontos, com as Nações Unidas a contabilizarem em Junho mais de 165
mil deslocados.
Esta situação, já por si
delicada, é agravada, segundo um recente relatório da ONU, pelo fenómeno
da corrupção generalizada nas elites políticas desse país que é rico em
petróleo mas cuja população vive na miséria.
Em entrevista concedida à RFI, Ana Elisa Cascão, investigadora
independente especialista do Corno de África, analisa o
contexto em que decorre o julgamento e o antagonismo -até pessoal- que existe
entre o Presidente Salva Kiir e o seu antigo vice-presidente Riek Machar.
RFI: Em que contexto em que decorre este julgamento?
Ana Elisa Cascão: Em termos de contexto, o Sudão do Sul é o país mais novo
do mundo, que nasceu em 2011, depois de um parto muito complicado e que tinha
um líder que era respeitado por todos, que era John Garang. Mas já na altura
estavam o Salva Kiir e Riek Machar. Faziam parte dos que estavam no terreno a
lutar pela independência do Sudão do Sul. Ele morreu num acidente trágico de
helicóptero no Uganda. Toda a gente sabe que não foi por mero acaso e,
portanto, o poder foi entregue a estas duas figuras que acontece serem de
etnias diferentes. Mas isso deixou de ser propriamente importante, porque isto
tem a ver com a partilha do poder e partilha de recursos financeiros,
obviamente, porque o Sudão do Sul tem bastante petróleo. E, portanto, isso é um
incentivo, obviamente, a conflitos no país, que é extremamente pobre. Mas a
guerra civil começou logo passado dois anos da independência. Em 2013 já
tínhamos estes senhores a batalhar. Mas nessa altura havia um oleoduto a
atravessar o Sudão que era um país estável, se podemos dizer assim. E portanto
havia bastantes influxos financeiros e dava para alimentar os dois corruptos.
Neste momento com a situação no Sudão, o investimento está a diminuir no Sudão
do Sul. Significa que existe um bolo mais pequeno para partilhar, mas mais
corruptos a quererem ter acesso a esse dinheiro. Em 2018, houve um acordo de
paz, mas como muitos acordos de paz nesta região e noutras regiões, é um
bocadinho uma paz podre. Mas este ano, as questões vieram todas ao de cima.
Aqui já não estamos a falar de um exército ou só dois exércitos. Nós estamos a
falar de milícias de um país que é controlado por milícias. Conclusão: quando
estamos a falar de milícias, é um bocadinho difícil atribuir causalidade, dizer
A, B, C, D isto, aquilo, aqueloutro. Portanto, independentemente de Riek Machar,
que de facto devia estar a ser julgado por muitos crimes, o Salva Kiir
provavelmente também devia. Agora, a questão é o dispositivo legal, depende.
Quem é que o vai julgar? Há juízes independentes no sul do Sudão do Sul? Este
processo é uma caça às bruxas e, portanto, não vai resolver propriamente nada.
E quanto mais não seja, porque -espero que isto não seja mal entendido- mas o
Salva Kiir está numa situação geriátrica. É uma pessoa que não tem saúde física
e sequer ainda discernimento para ser o Presidente de um país que, obviamente,
quer ter um mínimo de paz.
RFI: Ainda antes de se começar o julgamento de Riek Machar por
crimes contra a Humanidade, na semana passada, peritos da ONU divulgaram um
relatório estabelecendo que existe uma corrupção generalizada na elite do Sudão
do Sul e que desde praticamente a independência, essa elite está a açambarcar
as receitas do petróleo e deixou basicamente a população sem quase nada. Como
se vive no Sudão do Sul?
Ana Elisa Cascão: Mais uma vez, é uma situação complicada.
Portanto, este relatório das Nações Unidas vem providenciar evidência daquilo
que toda a gente sabe. Basta visitar a capital do Sudão do Sul, Juba. Eu fiz
isto em 2011 e 2012. O que é importante é, obviamente, ter carros de alta
cilindrada e relógios Rolex. É assim que se mede o poder. O Sudão do Sul não
tem outro recurso, não tem diamantes ou gás ou qualquer coisa desse género, mas
tem o petróleo, que continua a ser um dos recursos mais importantes na economia
global. E, portanto, neste momento temos empresas chinesas, da Malásia, a fazer
exploração de petróleo nessa área. Portanto, podemos ver que há aqui um
contínuo. A independência veio porque havia petróleo e a comunidade
internacional apoiou a independência do Sudão do Sul. O facto é que o país tem
todo o potencial. Agora começaram do zero. E isso é que nós também temos que
ver. Não havia nada. Não foi a guerra civil que destruiu o que lá estava. E,
portanto, houve essa ideia que a partir de 2018, com o acordo de paz, começou a
haver mais infra-estruturas, porque também havia mais dinheiro. E agora, neste
momento, temos aqui todo um país que é perfeito para corrupção e, depois, é um
país que não tem acesso ao mar. Está rodeado de países que estão eles próprios
em conflitos. Portanto, isto dá azo a estes políticos quererem manter no poder
para todo o sempre. Não chegam sequer a confiar na sua própria 'entourage'
própria. Mas o que é que vai acontecer? Vai mudar de mão. Portanto, os
contratos feitos com estas grandes companhias internacionais vão ser feitos
através de outras pessoas. Com certeza não vai acabar na mão dos Sudaneses do
Sul que há muitos, muitos anos, deviam ter mais do que o mínimo em termos de
tudo. Habitação, escolas, sítios para viver. Portanto, o que podemos observar é
que as pessoas estão outra vez a fazer exactamente aquilo que fizeram durante a
guerra civil do Sudão, que é abandonar o país.
RFI: Os apoiantes de Riek Machar dizem que estas acusações de
"crimes contra a Humanidade" são meramente "políticas". Na
semana passada, os peritos da ONU também disseram, por meias palavras, que, no
fundo, o que está em jogo é uma luta entre ambos os campos pelo controlo dos
recursos naturais. Isto, de facto, é mais uma questão política, uma luta pelos
recursos?
Ana Elisa Cascão: Eu acho que é assim que se pode definir. Há
aqui duas coisas em paralelo. Uma é haver recursos, é haver luta por esses
recursos, sabendo que este dinheiro não é imediato, tem de haver aqui contratos
com uma série de instituições. E depois, é a rivalidade pessoal. Têm mais de 70
anos, de certeza. Estão nesta luta e são vistos como líderes da independência,
ainda que nem os principais, há 30 ou 40 anos atrás. E, portanto, é muito
difícil substituí-los. Mesmo quem faz parte de um grupo ou de outro, falando,
por exemplo, em termos étnicos, porque há uma divisão claramente étnica.
Portanto, mesmo outras figuras poderiam eventualmente ser importantes e trazer
algum tipo de esperança. Tenho muitos amigos no Sudão do Sul que dizem que
'quem não tem sangue nas mãos no sentido de que não batalhou na guerra pela
independência do Sudão do Sul, não pode governar'. Portanto, estamos aqui a
fechar um capítulo muito grande. E então, quem é que vai substituir esta
geração? Mas penso que a população quer que haja eleições. Seja quem forem os
candidatos. Porque estamos na situação em que foram sempre estas duas pessoas,
como Presidente, vice-presidente ou grupos armados a ter quase dois exércitos.
RFI: Nesta altura, dado tudo o que aconteceu, a destituição de
Riek Machar, o julgamento, os apoiantes a apelarem para que haja uma acção
decisiva para mudar o regime, julga que estamos a caminho de uma nova guerra
civil aberta?
Ana Elisa Cascão: Eu acho que ela já está a acontecer. A questão é que
quando nós pensamos em guerra civil, estamos sempre a pensar num grupo contra o
outro. Aqui é muito mais do que isso. Foi o que aconteceu em Março. Riek Machar
disse que não tinha dado ordens a essas milícias e que as milícias tinham agido
por conta própria. Nós podemos não acreditar. Eu não acredito. Mas o facto é
que isso pode acontecer. E, portanto, tem que haver aqui um tipo de política,
nesse caso, da União Africana ou alguns dos países vizinhos que têm algum poder
de influência dentro do Sudão do Sul, como por exemplo, o Uganda, o Quénia. O
problema principal neste momento, são as milícias. Se as milícias não respondem
a ninguém, seja lá quem for que está sentado em Juba, o conflito vai continuar.
Pode haver eleições, porque isto foi sempre um problema do Sudão. Foi sempre
isso que se disse: que se se tornasse independente, esse risco estava lá.
Porque são pessoas que estiveram envolvidas na guerra e é isso que elas
conhecem, as lutas pelo poder, a luta com o vizinho do outro lado do rio. Há
que desmobilizar as milícias. Há, por exemplo, forças da União Africana ou do
IGAD (Autoridade Intergovernamental para o Desenvolvimento). Isso acontece na
Somália. Também já aconteceu no Sudão do Sul, na verdade. Portanto, deve haver
algum tipo de pressão a nível político do topo. Mas ao mesmo tempo, para
perceber porque é que estas milícias estão a crescer, elas estão a crescer por
causa da pobreza. A corrupção não é uma coisa que acontece no topo. Quando se
define corrupção, ela vai do ponto mais baixo até ao ponto mais cima do poder.
E, portanto, aqui já temos todo um 'setting' que tem que ser modificado.
RFI: Quais são as hipóteses de a comunidade internacional, a ONU
ou a própria União Africana de facto intervirem, tendo em conta que temos não
sei quantos conflitos abertos, considerados todos urgentes?
Ana Elisa Cascão: Temos um genocídio a acontecer em Gaza, temos guerra no
Myanmar, temos tantas guerras a acontecer que obviamente o Sudão do Sul é uma
coisa menor. Vamos só olhar para o mapa africano neste momento. O conflito da
República Democrática do Congo e do Ruanda não está nada resolvido e tem
ligações com estes conflitos também. Mas o Sudão em si é a maior crise
humanitária. Não estamos a falar do mesmo tipo de conflito que em Gaza,
obviamente. Estamos a falar de um país que está numa guerra civil, que é a maior
crise humanitária da história moderna. Dado o número de pessoas que foram
deslocadas inclusive para o Sudão, a Etiópia, para o Egipto e para o Chade, tem
que haver uma resposta. E aí sim, está na agenda o Sudão, porque tem muita
influência. O Sudão tem mar, tem uma fronteira com o Chade, há uma crise
humanitária incrível e muita ajuda humanitária não entra no Sudão, portanto,
está a ir para o Chade. Portanto, temos aqui tantos focos. O Sudão do Sul
aparece aqui como uma coisa menor. Neste momento, o Sudão no espectro africano
é a coisa mais importante a ser resolvida, porque envolve a comunidade
internacional, Emirados, a Arábia Saudita, etc, também no conflito. O Sudão do
Sul não está no final da lista mas não é -com certeza- considerada uma prioridade.ANG/RFI

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