Como seria uma Ucrânia neutra?
De Jorge Liboreiro, in
EuroNews
Bissau, 20 Abr 22 (ANG) - Durante duas décadas, desde a dissolução da União Soviética até a invasão russa da Crimeia, a Ucrânia foi, oficialmente, um país "não-alinhado" – ou neutro – em assuntos internacionais.
Na prática, isso significou que, embora o país muitas
vezes oscilasse entre governos pró-russos e pró-europeus, não tomou formalmente
um lado nas idas e vindas geopolíticas entre o Oriente e o Ocidente.
Tudo isso mudou em 2014, quando a Rússia invadiu e
anexou a península da Crimeia. A Ucrânia
abandonou oficialmente o
estatuto de país "não-alinhado" e os deputados aplaudiram ao votar
para derrubar a posição neutral do país com 303 votos a favor e apenas oito
contra.
O passo aproximou o país da NATO e foi imediatamente
denunciado por Moscovo como "hostil" e "contraproducente."
Em 2019, a Constituição da Ucrânia foi alterada para
incluir uma nova linha no preâmbulo declarando "a irreversibilidade do
curso europeu e euroatlântico" do país.
À medida que a ofensiva russa prossegue na Ucrânia, a
cláusula juridicamente vinculativa pode ser disputada.
Em março, o presidente da Ucrânia Volodymyr Zelenskyy
disse: "garantias de segurança e de neutralidade, o estatuto não-nuclear
do nosso Estado. Estamos prontos para isso. Este é o ponto mais
importante."
Zelenskyy enfatizou que qualquer tratado de paz exigiria
um cessar-fogo, a par da retirada das tropas russas para as linhas pré-invasão,
e recusou exigências de desmilitarização do país.
O acordo final, disse , teria que ser submetido a
um referendo.
De acordo com a prática internacional, espera-se que os
países que se declaram neutros fiquem longe de conflitos armados, presentes e
futuros, e que recusem assistência e acesso territorial a todos os
beligerantes, com exceção da ajuda humanitária.
Consequentemente, a participação em qualquer tipo de
aliança militar – independentemente do tamanho e da missão – é vista como uma
violação da neutralidade.
Para a Ucrânia, isso significaria desistir da antiga
aspiração de aderir à NATO, uma concessão que o Kremlin acolheria calorosamente
e que Zelenskyy deu a entender que poderia aceitar em troca da paz.
Mas os ucranianos podem ter dificuldades em aceitar
isso depois de resistir ao avanço do exército russo, muito maior e mais bem
equipado.
"Provavelmente, isso não será bem recebido pela
população ucraniana agora", sublinhou, em entrevista à Euronews, Anton
Nanavov, vice-diretor de Relações Internacionais na Universidade Nacional de
Kiev.
"Eu posso dizer, com certeza, qual será a reação.
Provavelmente precisaremos sentir, como nação, que conseguimos obter algo como
substituto para esse estatuto. Precisaríamos ter garantias muito fortes de que
[a guerra] nunca mais acontecerá."
Uma sondagem recente realizada pela Rating, uma empresa
independente de sondagens da Ucrânia, mostrou que 68% dos residentes apoiaram a
ideia de aderir à NATO. Um número semelhante aos estudos anteriores à guerra.
A sondagem excluiu a Crimeia e as duas regiões
separatistas do leste da Ucrânia.
Trocar os sonhos da NATO por uma paz duradoura pode
ser viável, mas dependeria da disposição da Rússia para respeitar o acordo, uma
grande questão neste momento, observou Nananov.
"[A neutralidade pode ser] uma possibilidade se
for a última exigência da Rússia a nós e se eles nos disserem que a Ucrânia é
livre, se retirarem as tropas destacadas e devolverem a Crimeia",
acrescentou.
"Pode ser considerado, mas não tenho certeza de
que isso será muito bem aceite pelas pessoas.
Serhiy Kudelia, professor assistente na Universidade
de Baylor, no Texas, disse que a “repentina reviravolta” de Zelenskyy sobre a
NATO representaria um “consentimento explícito a uma das principais exigências
da Rússia.”
"Em vez de uma escolha estratégica feita por
vontade própria da Ucrânia, a neutralidade tornar-se-ia uma política imposta à
sociedade ucraniana e às suas elites através do uso da força. Na verdade, a
perspetiva de neutralidade carece de legitimidade política mais profunda e
será, provavelmente, contestada de forma imediata", escreveu Kudelia
num artigo para a organização não governamental Open Democracy.
"Estaria em risco permanente de reversão por
qualquer um dos sucessores de Zelenskyy. Isso prejudicaria a eficácia da
neutralidade como ferramenta das relações internacionais. Em vez disso,
provavelmente, tornar-se-ia uma fonte permanente de instabilidade
interna."
A neutralidade é um conceito que remonta há vários
séculos e que foi progressivamente codificado no direito internacional, a
partir da histórica Convenção de
Haia V e XIII de 1907.
Atualmente, só alguns países são reconhecidos como
neutros, desde membros do G7 a micro estados. Alguns países, como o Japão,
Finlândia e Suíça, mantêm um exército moderno e bem financiado, enquanto
outros, como o Panamá, Mónaco, Liechtenstein e Cidade do Vaticano, têm pouca ou
nenhuma capacidade militar.
Na prática, a neutralidade é bastante flexível e os
países têm uma grande margem de discricionariedade para interpretar o seu
estatuto, desde que não haja envolvimento direto na guerra.
A Finlândia, por exemplo, está a enviar armas de fogo
e armas antitanque para a Ucrânia, enquanto a Suíça quebrou um
precedente ao impor sanções à Rússia. O Japão, por outro lado, preserva um
tratado de cooperação e segurança mútua de décadas com os EUA.
No entanto, a neutralidade é considerada um fato
consumado pela comunidade internacional.
"A neutralidade funciona quando o equilíbrio de
poder está em vigor. Funciona quando é do interesse de todos que
funcione", disse Pascal Lottaz, professor de estudos de neutralidade na
Universidade Waseda, em Tóquio.
"Entre 1991 e 2014, a Ucrânia estava mais ou
menos numa espécie de equilíbrio político. Com alguns governos, a Ucrânia foi
mais pró-europeia. Com outros governos, foi mais pró-russa. Mas o país manteve
sempre a postura de permanecer neutro e de não se juntar a nenhum dos lados.
Isso foi perturbado em 2008, quando a NATO prometeu a adesão à Ucrânia."
Um novo equilíbrio de poder teria que nascer das
negociações de paz para manter a neutralidade da Ucrânia e garantir que o país
seja protegido de novos atos de agressão não provocados.
A neutralidade e a segurança da Áustria foram
garantidas pelas potências aliadas após a Segunda Guerra Mundial e os dez anos
de ocupação que se seguiram.
Relatos de meios de comunicação ucranianos fizeram
circular a ideia de uma coligação de países garantes que abrangeria estados
como a Rússia, China, EUA, Reino Unido, França, Turquia, Alemanha, Canadá,
Itália, Polónia e Israel, embora ainda não se saiba quantos desses países
estariam dispostos a assumir tal responsabilidade.
A Turquia e Israel têm atuado como moderadores no
conflito, enquanto a China adotou uma posição deliberadamente ambígua, pedindo
paz e contenção, mas atacando as sanções e a "mentalidade da Guerra
Fria" do Ocidente.
"Teria de haver um acordo entre a Ucrânia e a
Rússia, e teria que incluir Washington também, porque, não vamos enganar-nos, a
guerra é entre a Rússia e a Ucrânia, mas o conflito é entre a Rússia e a NATO,
e principalmente os EUA. Então, seria preciso haver um acordo de todos os lados
de que todos estão em melhor situação se a Ucrânia permanecer neutra",
ressalvou Pascal Lottaz à Euronews.
"A Ucrânia tem pedido, por exemplo, garantias de
segurança se concordar em ser um país neutro. Mas quem é que deve dar essas
garantias de segurança? Certamente não poderia ser um Estado-membro da NATO
porque isso seria quase o equivalente à adesão à NATO, o que a Rússia jamais
aceitaria."
A privação de garantes externos e da integração na
NATO em simultâneo pode ser intolerável para os ucranianos, que, desde 24 de
fevereiro, estão a navegar num ambiente geopolítico altamente incerto e
volátil, cujos contornos ainda estão a desenhar-se.
Um caminho alternativo pode encontrar-se na adesão à
União Europeia (UE): ao abrigo de um tratado de paz, a Ucrânia poderia ter
permissão para prosseguir caminho rumo à integração europeia se abandonar
oficialmente as suas aspirações de aderir à NATO. Ao fazê-lo, a Ucrânia
tornar-se-ia o sexto país neutro a aderir à União Europeia, juntamente com a
Áustria, Finlândia, Irlanda, Malta e Suécia.
A perspetiva de adesão à UE ganhou enorme força desde
o início da guerra. A mesma sondagem que revelou um apoio à NATO de 68%,
evidenciou um apoio de adesão à UE de 91%, um número recorde.
O presidente da Ucrânia enviou a Bruxelas o pedido de
adesão formal, que agora está a ser analisado pela Comissão Europeia. O apetite
político aumentou consideravelmente em todo o bloco, com alguns países do leste
europeu a pedir um procedimento acelerado, uma opção inédita.
Mas a adesão à UE é uma perspectiva de longo
prazo, um projeto inspirador para os anos do pós-guerra. Neste momento, a luta
persiste e o foco está exclusivamente no campo de batalha – e na mesa de
negociações.
Tempos difíceis estão à frente em ambas as
extremidades.
Dias depois de Volodymyr Zelenskyy endossar
explicitamente o regresso da Ucrânia à neutralidade, o presidente russo,
Vladimir Putin, disse que as negociações de paz chegaram a um "beco sem
saída" e prometeu que "a operação militar continuará até à sua
conclusão total." Mais tarde, ordenou um ataque total para obter o
controlo de toda a região do Donbas. ANG/EuroNews
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