Cabo Verde/Amílcar Cabral: as múltiplas facetas do líder da luta de libertação
Bissau, 01 Jul 25 (ANG) - Nos 50 anos da
independência de Cabo Verde, a RFI publica uma série de reportagens em torno
deste tema.
Neste quinto episódio, foi à procura de
algumas memórias sobre Amílcar Cabral, o líder da luta de libertação da Guiné e
de Cabo Verde, descrito como estratega, poeta, pensador, visionário e “pai”
para muitos.
É na fachada de um liceu, na Achada Frente Grande, na cidade da
Praia, que viu um retrato gigante de Amílcar Cabral, com os seus óculos e a sua
sumbia, esculpido pelo artista português Vhils. Esta é mais uma homenagem
ao ‘homi grandi’
[‘grande homem’] que ficou na memória dos seus compatriotas
como o pai das nacionalidades cabo-verdiana e bissau-guineense.
Líder incontestável da luta pela independência da Guiné-Bissau e
de Cabo Verde, Amílcar Cabral é uma figura do panafricanismo e uma das
personalidades mais importantes da luta anticolonial e do pensamento
revolucionário no século XX. É, ainda, considerado como o motor da queda do
Império Português e da viragem pós-colonial do mundo contemporâneo. Foi,
também, um estratega militar e político e um pensador que continua a ser uma
referência nas lutas contemporâneas contra o imperialismo, o racismo e o
neocolonialismo.
O historiador e sociólogo António Correia e Silva, co-autor dos
três volumes da História Geral de Cabo Verde, diz que o revolucionário é, antes
de mais, um filho de Cabo Verde e da Guiné-Bissau e que herdou combates de
gerações anteriores, sintetizando e canalizando toda a cultura de protesto que
se foi cimentando numa história ritmada pela tragédia cíclica das fomes e do
colonialismo.
O historiador vai mais longe e considera que as preocupações de
Amilcar Cabral “são mais amplas” porque além de militante de uma causa
nacionalista, “o seu pensamento busca a emancipação enquanto tal”.
“Ele vê para lá da missão do Estado, Amílcar Cabral tem preocupações do
que ele chamava o projecto da humanidade e de povos africanos e, no caso
concreto, cabo-verdiano e guineense, dentro desse projecto de humanidade.
Aliás, ele tem uma expressão extremamente ambiciosa, ambígua e utópica, que diz
que mesmo na condição de escravatura e do colonialismo, podemos trazer para a
humanidade as especificidades da nossa cultura e enriquecemos o património
comum da humanidade. Então, na liberdade e independentes estaríamos plenos para
esse projecto de humanidade”, descreve o professor António Correia
e Silva.
Amílcar Cabral nasceu em Bafatá, na Guiné-Bissau, a 12 de Setembro de 1924, filho de cabo-verdianos. Estuda em Cabo Verde, primeiro em Santiago, depois no Liceu Gil Eanes, em São Vicente. Aluno brilhante, consegue uma bolsa para o ensino superior em Portugal. Em Lisboa concretiza o pensamento nacionalista, particularmente na Casa dos Estudantes do Império, da qual chegou a ser vice-presidente em 1951. Foi cofundador e colaborador do seu boletim Mensagem e criou o Centro de Estudos Africanos com Mário de Andrade e Agostinho Neto. A partir da Casa dos Estudantes do Império, ele e colegas de outras colónias começam a apoiar-se na luta pela independência dos seus países. Ainda nessa altura, ele conhece Maria Helena Rodrigues, ao lado da qual vai iniciar a luta.
Formado em engenharia agrónoma, Amílcar Cabral trabalha
entre 1952 e 1955 em Pessubé, na Guiné, onde dirige o Posto Agrícola
Experimental e faz o recenseamento agrícola de todo o território, com viagens
que lhe serão úteis para a luta posterior. A 19 de Setembro de 1956, de acordo
com a historiografia oficial do PAIGC, funda o partido do qual é o primeiro
Secretário-Geral. Em Dezembro de 1957, participa na fundação do Movimento
Anticolonialista (MAC), depois na Frente Revolucionária Africana para a
Independência Nacional e na Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias
Portuguesas, ao lado de camaradas das outras colónias.
A sua primeira conferência de imprensa em que denuncia o colonialismo português é em Março de 1960, mês em que vai para Conacry, onde passa a viver e que passa a ser a sede do partido e da luta. É em Conacri que, mais tarde, instala a Escola-Piloto para os filhos e órfãos de combatentes. Amélia Araujo, a locutora mais conhecida da Radio Libertação e que também trabalhava no secretariado, conheceu-o de perto.
“O Amílcar era
uma pessoa fora de série. Era uma pessoa extraordinária, que se preocupava com
todos nós e que adorava as crianças. Ele dizia: ‘As crianças são a razão da
nossa luta e as flores da nossa revolução’. Bonito, não é? Ele dava muita
atenção às crianças. Todos os dias, de manhã cedo, ele ia à Escola-Piloto,
sentava-se lá com os meninos, contava histórias, ensinava jogos, fazia
competições entre rapazes e raparigas, na corrida, por exemplo. A minha filha
ganhava sempre!”, conta, com orgulho, Amélia Araújo, ao
lado da filha, a cantora Teresa Araújo, numa conversa em casa delas, na cidade
da Praia, na ilha de Santiago.
A partir de Conacri, Amílcar Cabral
implementa todo um sistema de ensino pioneiro nas chamadas zonas libertadas na
Guiné-Bissau, assim como hospitais, tribunais, assembleias populares, lojas do
povo e são organizadas várias formações no exterior para preparar os futuros
quadros dos dois países independentes.
“Amílcar era
uma pessoa muito humana, uma pessoa muito responsável, uma pessoa muito honesta
e uma pessoa amiga. Todas as vezes que a gente se encontrava, ele punha-me ao
lado dele para sentar na mesa e a gente falava depois. Ele tinha a atenção de
dizer: ‘Vou ter um pequeno espaço para ti para falarmos da tua filha’.
Portanto, para além de ser o meu líder, também foi como se fosse um pai. Você
está a ver a estima que eu tenho por ele? Ele até está na minha entrada para
toda a gente ver que eu sou Amílcar Cabral. Eu apoiei Amílcar Cabral. Foi o
melhor líder que nós podíamos ter. Melhor não vai aparecer nunca”, sentencia Tutu.
A antiga combatente recorda também que quando a motivação esmorecia, o líder do PAIGC tinha sempre as palavras certas: “Tu sabes porque é que estás aqui, filha. Estamos a lutar. É um comboio que viaja, alguns descem, outros sobem. Mas tu não vais deixar esse comboio porque eu penso que sabes por que é que tu estás cá. Não vieste à toa.”
Só depois de frustradas todas as tentativas de diálogo com o poder colonial português, é que se passa da ação diplomática à luta armada em 1963. Amílcar Cabral foi, por isso, um estratega militar e muito mais, descreve o comandante Silvino da Luz.
“Amílcar era um ser humano, antes de mais, extremamente humano,
extremamente humanista. Mas o Amílcar tinha várias facetas. Amílcar era
engenheiro, mas foi um chefe militar, um estratega inconfundível. Amílcar foi
simultaneamente poeta e foi um visionário”, afirma Silvino da Luz,
sublinhando que “a sua inovação da proclamação do Estado [da Guiné-Bissau] durante a
luta foi uma coisa brilhante”.
Silvino da Luz diz que seria preciso um
livro para descrever Amílcar Cabral, mas vai avançando com mais algumas
pistas: “É
um teórico, um pensador das ciências sociais e políticas inconfundível. As suas
grandes armas, seus grandes textos que ele deixou, por exemplo, 'O Papel da
Cultura na Libertação Nacional', 'A arma da teoria', etc, etc, etc, que o
tornaram célebre. Ainda hoje é lembrado e festejado e é comemorado nos
diversos continentes. Portanto, era um homem de muitas facetas, um homem
invulgar, profundamente humano. Ele dizia: ‘Se tivesse de mandar matar alguém
dentro dos meus quadros da luta, então eu deixaria nessa mesma altura de ser
dirigente e nunca mais seria dirigente desta terra’’.
Amílcar Cabral era, de facto, um “pensador e um grande líder”, resume a filha Iva Cabral, que também nos abre as portas de sua casa, na Praia, para nos falar do líder africano.
“Ele é um grande líder. Conseguia levar as pessoas atrás dele. conseguia formar equipas. Era uma pessoa honestíssima porque ele dizia-me que ‘o problema de África não é a falta de recursos, o problema da África é a falta de honestidade, a elite africana não é honesta’. E é a realidade, diga-se de passagem. Nós traímos os nossos ideais. E ele dizia que o processo revolucionário não é uma ambição que ele tinha para a nossa juventude porque o que nós devemos é ser honestos conosco, honestos com o povo”, lembra a historiadora Iva Cabral.
A pedra angular do ideário político de
Amílcar Cabral era o princípio da “unidade e luta”, acrescenta. Os militantes
da Guiné e Cabo Verde deveriam lutar juntos pela independência e contra o
inimigo comum: o colonialismo português. Mas havia ecos de queixas de
nacionalistas guineenses que se consideravam preteridos em detrimento de
elementos da ala cabo-verdiana na ocupação de escalões superiores da estrutura
do partido. Algo que viria a ser usado e instrumentalizado por parte da
PIDE/DGS que tudo tinha a ganhar com a divisão entre os dois povos.
O comandante Osvaldo Lopes da Silva
chegou a confrontar Amílcar Cabral sobre a questão da unidade e a alertar para
a necessidade de mostrar que os cabo-verdianos não queriam mandar na Guiné e
queriam estar a par da evolução das coisas no que toca à luta pela
independência também nas ilhas.
“Devia-se vincar - até para sossegar os guineenses - que o cabo-verdiano não queria ir mandar na Guiné, que o cabo-verdiano quer mandar em Cabo Verde e o guineense que mande na Guiné. Vincar, chamar a atenção mesmo para o facto da História não nos aproximar. A História podia ser até um factor de maior separação porque a Guiné esteve durante muito tempo subordinada ao governo de Cabo Verde e isso cria movimentos de rejeição da parte da Guiné. E tínhamos que compreender”, explica o antigo comandante de artilharia.
No regresso de uma formação de marinha
de guerra no Mar Negro, Osvaldo Lopes da Silva e o grupo de cabo-verdianos que
dirigia sentiram a hostilidade de elementos guineenses na Marinha, alguns dos
quais estariam envolvidos no futuro complô que levaria à morte de Amílcar
Cabral.
A 23 de Janeiro de 1973, Amílcar Cabral
era assassinado. Ana Maria Cabral, a esposa, estava com ele
nessa noite. Diz que “não houve
nenhuma justiça” e que “toda
a verdade ainda não foi dita”.
“Não houve
nenhuma justiça. Não houve nenhuma justiça. Já se escreveu muita coisa sobre
isso, mas toda a verdade ainda não foi dita. Eu pensei que depois da morte do
Spínola, a verdade saísse. Falta esclarecer quem foram realmente - além de Spínola
- quem foram todos os intelectuais que trabalharam nisso. Uma vez li uma
entrevista de Spínola em que ele dizia, mais ou menos isso: ‘Eu não dei a
ordem, eu não disse para matar. Eu não dei ordem para matar.’ Mas como é que se
vai distribuir armas a alguém e se diz para não utilizar as armas?",
questiona Ana Maria Cabral, numa conversa em
frente à praia, na capital de Cabo Verde.
Até que ponto as divergências em relação
à unidade não estiveram na origem do assassínio de Amílcar Cabral, a 23 de
Janeiro de 1973? O líder do PAIGC foi assassinado em Conacri, em
frente à sua residência, por um grupo que pretendia prender e eliminar os
dirigentes do partido, pouco mais de dois anos depois da fracassada
Operação Mar Verde, em que o exército português invadiu
Conacri para tentar acabar com a direcção do PAIGC (22 de
Novembro de 1970). Inocêncio Kany foi o homem que disparou a matar
contra Amílcar Cabral, mas os mais próximos apontam a responsabilidade do então
governador na Guiné, António de Spinola.
O único cabo-verdiano presente nos
interrogatórios aos assassinos de Amílcar Cabral foi Alcides Évora, conhecido
como “Batcha”. Uma vez, na cantina do secretariado, ele conta ter
ouvido Amílcar Cabral dizer que “quem o havia de matar eram os próprios camaradas do PAIGC”.
Porém, “ele tinha uma confiança
ilimitada nos camaradas”, acrescenta.
Sobre os interrogatórios, em que serviu de intérprete, ele recorda que “estavam sempre a dizer mal dos cabo-verdianos e achavam que Cabral estava a beneficiar os cabo-verdianos em detrimento dos guineenses”. “Havia um certo ódio contra Cabral”, lamenta o homem que trabalhou bem perto do líder do PAIGC, no secretariado em Conacri, como nos mostra numa das fotografias em exposição na Fundação Amílcar Cabral.
A morte de Amílcar Cabral não impediu que se cumprisse o seu objectivo: libertar a Guiné e Cabo Verde das garras do colonialismo. O comandante Pedro Pires, que depois do 25 de Abril de 1974 liderou a delegação cabo-verdiana nas negociações da independência, recorda que “sem o PAIGC ou sem essa aliança entre Guiné e Cabo Verde, a independência de Cabo Verde seria complicada”.
“Isso, em
certa medida, permitiu as vitórias ou a vitória final, se quiser dizer isso, na
Guiné. A introdução dos artilheiros cabo-verdianos que melhoraram a
capacidade da artilharia que era a arma que fustigava mais os quartéis e podia
destruir os quartéis. Essa chegada e a introdução dos artilheiros cabo-verdianos
foi um factor de mudança favorável à melhoria das capacidades das Forças
Armadas do PAIGC”, testemunha Pedro Pires, acrescentando que essa aliança
Guiné-Cabo Verde também abriu as portas às negociações para a independência
depois da queda do Estado Novo em Portugal.
Também a historiadora Ângela Benoliel
Coutinho, autora de “Os dirigentes do PAIGC: da fundação à rutura:
1956-1980”, considera, em entrevista por telefone, que a “unidade e luta” foi
uma “fórmula brilhante” que resultou na libertação e independência da
Guiné-Bissau e Cabo Verde, mas também no fim da ditadura em Portugal.
“A aposta em unidade e luta da direcção do PAIGC foi uma aposta brilhante que deu excelentes resultados, que permitiu libertar a Guiné-Bissau e Cabo Verde e que deu um forte contributo para libertar os portugueses da ditadura fascista, visto que desde há décadas tinha havido diversas tentativas de golpes de Estado, todas falhadas contra o regime do Estado Novo em Portugal, e esta tentativa foi bem sucedida”, resume a investigadora.
Por sua vez, José Vicente Lopes,
jornalista e autor do livro pioneiro sobre a história contemporânea do país “Cabo
Verde - Os Bastidores da Luta pela Independência”, considera que o
principio de “unidade e luta” foi “uma das utopias de Amílcar Cabral”,
simultaneamente uma força e o ponto fraco do PAIGC.
“Quando
Amílcar falava em unidade, ele falava em várias unidades e querer ver uma
população tão heterogénea como a guineense ou mesmo como a cabo-verdiana, chega
a ser quase uma espécie de utopia ou então uma unidade imposta a martelo que
também não funciona. Aliás, a história vem mostrar isso. A tal unidade
pretendida pelo Amílcar era ao mesmo tempo força e, ao mesmo tempo, o ponto
fraco do PAIGC ou daquele processo. Daí que foi uma das utopias do Amílcar que
não se realizou por razões mais diversas, na medida em que a unidade nunca é
feita por decreto, nem por força. Então, logo as coisas tiveram o fim que
tiveram e, do meu ponto de vista, isto hoje é passado e não sei até que ponto
vale a pena gastar mais tinta com isto”, considera José Vicente Lopes, também ao
telefone com a RFI, a partir dos Estados Unidos, onde em Maio foi convidado
pela diáspora a falar sobre o livro “Cabo Verde - Um corpo que se
recusa a morrer”.
A independência de Cabo Verde chegaria
mais de dois anos depois da autoproclamada pela Guiné-Bissau, com o PAIGC a
negociar com Lisboa os termos da independência cabo-verdiana, na sequência
da queda da ditadura portuguesa, a 25 de Abril de 1974. Alguns anos depois, o
golpe militar de 14 de Novembro de 1980 na Guiné-Bissau desfez o sonho
de Amílcar Cabral de uma união política entre a Guiné-Bissau e Cabo Verde
e ditou a cisão do PAIGC e a fundação, em Cabo Verde, do PAICV.
Meio século depois, o legado de Amílcar Cabral persiste e o homem que é considerado como um dos maiores líderes africanos de sempre, continua a ser símbolo de resistência, unidade, luta e panafricanismo. ANG/RFI










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