Política/ "O órgão soberano da
Guiné-Bissau é o povo!", diz Carmelita Pires
Bissau, 22 Jun 23 (ANG) – Confirmada a vitória da coligação PAI -Terra Ranka que
conquistou a maioria absoluta nas legislativas do dia 4 de Junho,
perspectiva-se na Guiné-Bissau um cenário de coabitação política entre o actual
Presidente da República e a coligação coordenada por Domingos Simões Pereira
que há cerca de uma semana estiveram reunidos e mantiveram, segundo as suas
próprias palavras, uma "conversa tranquila".
Face
a este novo cenário que se avizinha, surgiram interpretações diversas das
prerrogativas constitucionais de cada pilar da soberania na Guiné-Bissau e
voltou também a estar em debate a necessidade -ou não- de alterar a
Constituição, cuja matriz datando de 1984 foi inspirada da Constituição
portuguesa, como aconteceu com vários outros países.
Foi
neste contexto que há dias, Carmelita Pires, mestre em Direito Constitucional e
antiga Ministra da Justiça, publicou nas redes sociais um texto evocando
precisamente estes pontos. Em entrevista com a RFI, Carmelita Pires recordou o
que estipula a Constituição guineense para cada órgão de soberania, sendo que
actualmente o regime do país é semipresidencialista. Na óptica da antiga
governante, tem havido "nuances" na
forma como se interpreta a lei que, a seu ver, acabou por ser desvirtuada do
seu sentido inicial.
RFI: Quais são as prerrogativas do Presidente da República? Pode
presidir o Conselho de Ministros?
Carmelita Pires: Há ressonâncias do Estado de partido único, que é a lei
n°1/73, numa das revisões, que recai sobretudo na questão da organização dos
nossos órgãos políticos e adopta um sistema semipresidencial. Vamos lá ver um
exemplo dessas "nuances". Tínhamos um Chefe de Estado que era chefe
de Estado, era chefe do governo, presidia eleições, orientava toda a política
do governo. É nesse sentido que há uma disposição que diz "quando
entender". Ora esse "quando entender" vai desvirtuar as relações
dos órgãos de soberania, sobretudo quando o princípio principal é a separação e
a independência dos órgãos de soberania e a observância de todos à
Constituição. Quando temos essa intenção desse governo de iniciativa
presidencial que está neste momento em gestão totalmente assumida,
inclusivamente com a criação de cargos que não existem a nível constitucional,
como é o "vice primeiro-ministro", nós temos algum receio quando há
alguns sinais que demonstram que isto pode persistir. Ora, isto é desvirtuar o
semipresidencialismo da Guiné-Bissau com um pendor muito acima do
presidencialismo. Não é isto que a nossa Constituição diz. A prova evidente é
que em 20 anos de sistema democrático, nós tivemos 21 Primeiros-ministros,
tivemos um único Presidente que concluiu o seu mandato, mas num clima de total
instabilidade política. Portanto, é da tal ideia de vontade de paz, de
estabilidade, de esperança, que desponta esta esperança de ver as coisas
cumpridas em equilíbrio. O equilíbrio não é "quando o Presidente
entender". O equilíbrio é "quem é o chefe do governo, é o
Primeiro-ministro", "quem preside (o conselho de ministros) é o
Primeiro-ministro". Se o Presidente entender, em concertação com o
Primeiro-ministro, pode -por um assunto importante, fundamental, de interesse
nacional- fazer-se convidar, como está aliás na Constituição portuguesa e nas
outras.
RFI: Relativamente ao Primeiro-ministro, o Primeiro-ministro tem
que responder perante o Presidente da República ou perante o parlamento?
Carmelita Pires: Isto está claríssimo na nossa Constituição. A legitimidade
do Presidente e a legitimidade da Assembleia da República são diversas, como
nós sabemos, e ele é responsável quer perante a Assembleia, quer perante o
governo. Mas atenção, é o programa do governo que é apresentado na assembleia e
que é aprovado e na base do qual ele governa. Depois existe aquela
responsabilidade de informar o Presidente da República como, efectivamente, o
governo chefiado pelo Primeiro-ministro dirige a política interna e a política
externa do país. Mais do que isso não existe na nossa Constituição.
RFI: Quais são exactamente as prerrogativas do Parlamento neste
regime semipresidencialista?
Carmelita Pires: é o órgão superior legislativo. Infelizmente, também não
temos sido muito bem-sucedidos. Eu gostaria de usar uma expressão que resulta
das minhas reflexões: depois de umas legislativas no nosso país, nos temos
sempre umas "segundas voltas". Quer-me parecer que é aquilo que está
a acontecer neste momento, porque o país é caracterizado e Álvaro Nóbrega, num
dos seus livros, retrata isso muito bem, a luta pelo poder desde os tempos
remotos. Estamos neste momento a assistir a uma segunda volta das legislativas,
o que é absurdo num sistema que está claro para quem entende e, sobretudo, com
titulares de órgãos políticos que possam assimilar minimamente o que é que a
lei suprema desta República nos diz e que possam, pelo menos, correr o risco de
ser responsabilizados -como diz a Constituição- quer do ponto de vista civil,
como do ponto de vista político, mas também criminal. Está previsto. Volto
sempre a isto. Ás tantas, deixamos de ter qualquer partido político e pensamos
no país. É redobrada uma esperança para que a própria assembleia esteja exclusivamente
adstrita aos poderes que são os principais desta República em termos de
fiscalização do trabalho do governo e de fazer as leis. Isto é a Assembleia.
Aliás, desde que foi proclamada em Boé, já eram estes os atributos da
Assembleia Nacional, tanto mais que hoje se chama "Popular" e não
Assembleia "Nacional".
RFI: Na semana passada, o actual Presidente da República recebeu o
líder da coligação que venceu as eleições legislativas. Disseram desta conversa
que foi uma "conversa tranquila", depois de ter havido alguns
desacordos sobre a interpretação da Constituição. Como se sente depois desta
conversa? Julga que haverá eventualmente condições para haver uma coabitação
pacífica?
Carmelita Pires: Espero que haja porque é isso que nós esperamos. Nós
votamos, muitos de nós por voto útil, perante o que se está a viver no nosso
país, nós temos aquela esperança de que efectivamente, pela primeira vez, se
entendam, que o cartaz de campanha -que não o Presidente que também foi cartaz
de campanha- que é o chefe da coligação que ganhou a maioria absoluta possa
efectivamente governar o nosso país em tranquilidade e representar esta
maioria, este interesse, esta vontade do povo. O presidente da República, que é
outro órgão de soberania, tem de se submeter a esta vontade e não é por
questões pessoais, ou outras que se possam eventualmente inventar, que vem pôr
mais uma vez em causa a vontade popular da Guiné-Bissau e o sistema de
governação deste país. Estamos em crer que sim e que ao cartaz de campanha,
Domingos Simões Pereira, lhe possa ser dado o direito de nos administrar
durante um período de 4 anos e possam, desde já, começar a pensar na questão
das presidenciais. É fundamental. Queremos equilíbrio, temos direito de ser
governados de maneira estável e temos direito também a finalmente conseguir,
desde a proclamação deste Estado, cumprir um programa maior que é dar as
condições mínimas a esta população e desenvolver este país.
RFI: Depois dos desacordos que houve relativamente à interpretação
da Constituição, voltou-se também a evocar o terno debate sobre a necessidade
-ou não- de alterar a Constituição e de eventualmente mudar de regime. Acha que
de facto é necessário mudar a Constituição?
Carmelita Pires: Tenho alguma legitimidade, porque fiz parte
da equipa convidada pelo Presidente da República para a revisão constitucional.
Eu tive oportunidade de entregar ao Presidente da República a minha opinião
relativamente a esta matéria. É verdade que se não capazes, os nossos
políticos, de cumprir com a Constituição e o regime semipresidencialista, então
que se reveja. Mas rever a Constituição não é em iniciativas pontuais e muito
menos iniciativas que vão copiar a evolução do constitucionalismo português.
Nós somos um país particular, estamos fartos de o comprovar com todas estas
instabilidades, somos uma série de etnias e isto tem que se saber fazer. Há
gente aqui preparada que sabe como orientar isto. Tem que haver um referendo,
tem que haver uma consulta generalizada e minuciosa da população. O órgão
soberano deste país é o povo! Não é como as coisas estavam a ser feitas, quer a
nível da Assembleia, quer a nível da própria iniciativa presidencial que, mais
uma vez, seria -como foi em 1994- de apenas impor ao órgão soberano desta
República uma Constituição. Estamos a fazer 50 anos desde que se proclamou a
República. Há uma maturidade política apesar de não termos escola e de estarmos
há 3 anos com problemas gravíssimos na educação deste país, mas isto implica
que sejamos consultados. Basta uma boa vontade, que os políticos decidam que
"é desta" e há mesmo estabilidade. Vamos observar o que temos e vamos
projectar para algo que seja mais útil e que não seja o "copy, paste"
do regime português ou outro qualquer, que também pode ser o presidencialismo.
Este povo -sintomático disso é a maioria absoluta- quer ser tido e achado. Eu
própria quero ser tida e quero ser achada no que diz respeito ao futuro do meu
país e ao sistema de governação.
RFI: Quem defende o regime presidencialista argumenta que seria
muito mais fácil, até porque na região a maioria dos países adoptou o regime
presidencialista. Julga que isto é um argumento que se pode tomar em
consideração?
Carmelita Pires: Claro que podemos, porque é o debate. No trabalho que entreguei ao Presidente da República, defini os regimes, as vantagens e desvantagens de um e de outro, mas não é por aí. Estes debates justificam-se mas numa fase anterior, de ver as vantagens e apresentar isto tudo em termos de referendo, porque não? São imensos anos a formar pessoas neste país. A primeira escola neste país, foi a escola de Direito. Há muita gente bem preparada para fazer as coisas, mas em conformidade com os parâmetros constitucionais, porque só observando o que temos é que podemos dar o salto. Que seja presidencialista, semipresidencialista ou regime parlamentar, que seja, mas o melhor que nos puder sair. Já sabemos que temos que observar aquilo que é mínimo e está definido desde os tempos da Grécia (antiga) nos sistemas de governação, mas vamos adaptar ao contexto africano, não no sentido de dizer que "sai melhor o presidencialismo". Há muitos defeitos no presidencialismo também em África, inclusive na nossa sub-região. Portanto, eu concordo, leio, aprecio as teorias, mas continuo a defender a autenticidade porque é chegado o momento, depois de 50 anos, de pensarmos um bocadinho mais com o umbigo em algo que seja adequado para o país, através de uma lei magna que vá definir isso melhor, porque parece que não está bem, ninguém observa.ANG/RFI
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