Cultura/O casamento
precoce é o tema do novo filme de Mussa Baldé
Bissau, 02 Mai 25 (ANG) - O sábado passado marcou o fim das
rodagens na região do Biombo, do novo filme de Mussa Baldé, jornalista correspondente da RFI e colaborador da Lusa em
Bissau, mas que também escreve guiões e produz cinema.
A fita co-realizadas com o ator e diretor de Casting, Jorge
Biague, é intitulada 'Minina di Bandeja' e tem como temática o casamento
precoce, uma problemática ainda muito presente na Guiné-Bissau.
Depois de várias semanas de intenso
trabalho, Mussa Baldé fez um balanço positivo e disse que espera colocar o
filme nos ecrãs até ao final deste ano. Ao dizer o que o levou a rodar esta
fita, o guionista e cineasta começa por contar o enredo em torno de 'Sofy',
protagonista de 'Minina di Bandeja'.
RFI : Do que fala o filme 'Minina di
Bandeja'?
Mussa Baldé : 'Minina di Bandeja' é uma
ficção a partir de uma realidade que acontece na Guiné-Bissau, infelizmente.
Nós quisemos aventurar-nos no cinema contando a história de uma menina que foi
trazida do interior da Guiné-Bissau para ter uma vida melhor. A ideia da
menina, a 'Sofy', era vir a Bissau estudar, formar-se como enfermeira e voltar
para a sua comunidade, no interior, e servir a sua comunidade como enfermeira.
A 'Sofy' tinha um sonho, mas a tia dela tinha um outro objetivo com ela. Foi
buscar a 'Sofy' e meteu a 'Sofy' aqui em Bissau como vendedora ambulante. Um
trabalho que, para já, é um crime, porque trabalho infantil é uma coisa que o
Código Civil da Guiné-Bissau criminaliza. Mas nesse trabalho infantil, na venda
ambulante, 'Sofy' e acaba por ser confrontada com uma situação ainda mais desagradável,
que é o casamento forçado. Foi pedida em casamento por uma pessoa que ela nem
conhecia, nunca viu na vida. A 'Sofy' é uma menina esperta, também empoderada,
também orientada, consciencializada dos seus direitos por uma associação que
luta contra o casamento forçado. Ela foi informada de que tem a opção de
qualquer dia, quando for confrontada com o casamento forçado, poder fugir de
casa. Foi o que ela fez. Fugiu daquela casa. Foi para um centro de acolhimento.
Foi acolhida, Foi orientada. Estudou. Acabou por ser médica. Sendo médica,
acabou por criar uma organização com mais outras duas colegas que também
fugiram do casamento forçado. Criaram uma organização, uma associação e
lançaram uma grande campanha a nível da Guiné-Bissau, de consciencialização das
meninas sobre o perigo do casamento forçado. Eu não quero levantar aqui o
'spoiler' do filme, mas penso que vai ser um filme de que as pessoas vão
gostar.
RFI : Isto é inspirado em factos reais?
Mussa Baldé : Todos os guineenses
conhecem casos de casamento forçado nas comunidades. Aqui em Bissau,
infelizmente, o casamento forçado de meninas é uma prática que parece que se
enraizou na nossa sociedade. Ainda há duas semanas, estive no interior da
Guiné-Bissau, no Sul profundo, em Catió, a visitar um centro de acolhimento que
tem neste momento 37 meninas fugidas do casamento forçado nas várias
comunidades limítrofes duma cidade chamada Catió. Portanto, são coisas que
acontecem. O casamento forçado, infelizmente, cristalizou-se na nossa
sociedade. Eu diria que o casamento forçado em tempos remotos era uma prática
cultural. Agora, eu diria que é uma prática comercial. Os adultos utilizam as
meninas como elemento de troca para ganhar alguma benesse, algum dinheiro,
algum bem material. Infelizmente é o que acontece no nosso país, mas todos nós
temos que levantar as nossas vozes contra esta prática, porque é uma prática
degradante, é uma prática que põe em causa toda a dignidade de uma menina.
Imagina uma menina de 14 anos é dada em casamento com uma pessoa de 60 anos.
Portanto, aquilo não existe nem amor, nem afecto, nem respeito. Eu, enquanto
jornalista e outras pessoas que trabalham nesta temática, temos que reforçar o
nosso compromisso com esta causa, dar a voz, consciencializar as nossas
comunidades e, sobretudo, denunciar. Foi o que nós procuramos fazer neste
filme: denunciar o trabalho infantil. Porque estas meninas que são postas nas
ruas a vender coisas, passam por situações que nem passa pela cabeça de nenhum
comum mortal, porque são meninas que são sujeitas a situações extremamente
degradantes e, ainda por cima, são sujeitas ao casamento forçado, porque
estando nesta actividade de venda ambulante, estão expostas. Os adultos
conseguem localizá-las, aliciá-las, às vezes até pressioná-las para um casamento
que elas nem nem sequer fazem ideia do que seja. Infelizmente, é a nossa
realidade.
RFI : As temáticas societais e em
particular, a condição das meninas e das mulheres é um assunto que me toca
particularmente, uma vez que as tuas personagens principais são mulheres. Foi o
que aconteceu, por exemplo, com 'Clara di Sabura'.
Mussa Baldé : Sim. Há muitos anos que
tenho vindo a trabalhar nesta temática dos direitos das mulheres.
Das meninas porque sou sensível a estas questões. Eu devo ser dos
jornalistas aqui na Guiné-Bissau que mais acompanhou a senhora Fátima Baldé,
uma grande activista do nosso país dos Direitos Humanos, dos Direitos das
Mulheres. Ela foi presidente do Comité Nacional de Luta contra as Práticas
Nefastas da Saúde da Mulher e Criança. Eu andava com ela, seguia os trabalhos
dela sempre que ela tinha uma denúncia de uma situação de mutilação genital
feminina, do casamento forçado, casamento precoce, violência doméstica, abuso
contra as meninas. Ela ligava-me a mim enquanto jornalista para fazer
cobertura, para dar visibilidade a essa luta que ela travou na Guiné-Bissau
contra esta sociedade machista. Portanto, eu fui-me acostumando e fui gostando
desta temática. E agora disse 'Bom, já que tenho algum conhecimento e algum
saber, digamos assim, desta temática, porque não elaborar sobre esta temática
com outros elementos?' Portanto, o filme 'Clara di Sabura' foi um filme que
quis mostrar que as meninas que estão aqui no Centro Urbano de Bissau têm
outras alternativas que não a vida fácil. Muita gente não gostou da perspectiva
que eu dei ao filme, mas é a minha visão. É isso que faz uma sociedade
democrática e plural. Cada um dá a sua versão de como é que vê a sociedade. Há
muita gente que achou que eu fiz uma crítica muito sarcástica em relação àquilo
que é a condição da vida das meninas na Guiné-Bissau, mas eu quis mostrar na
'Clara di Sabura' que há outra alternativa. Agora este filme aqui é mais um
filme de denúncia e de trazer ao de cima uma realidade que muita gente finge
que não vê. Porque lugar de uma menina, na minha perspectiva, é na escola ou a
brincar. Imagina uma menina de 12 anos, de 11 anos, nove anos a vender nas ruas
até às 22h00 os perigos que esta menina enfrenta?
RFI : Como é que foram as filmagens de
'Minina di Bandeja'? Isto envolveu actores profissionais e não-actores.
Mussa Baldé : Sim. Envolveu actores profissionais e actores
amadores. Eu penso que as pessoas vão se surpreender pela qualidade de
performance, sobretudo de actores e actrizes amadores. Porquê? Porque eu fui
buscar jovens dos liceus e das universidades. Tivemos quase dois anos nos
ensaios para perceber o que é que se pretende com o filme. Fizemos visitas a
esse centro de acolhimento de meninas fugidas do casamento forçado duas vezes.
E fui buscar uma pessoa com alguma experiência no domínio da arte cénica, que é
o Jorge Biague. Jorge Biague é um personagem muito conhecido aqui na
Guiné-Bissau porque participou e trabalhou com Flora Gomes e Sana Na N'Hada
durante vários anos. E o Jorge trouxe a sua experiência, sobretudo na encenação
do roteiro. O roteiro foi escrito por mim. Mas o Jorge Biague trouxe esse
roteiro para a cena. Conseguiu transformar o roteiro em arte dramática.
Trabalhou com com a minha equipa durante quase sete meses e depois partimos
para as filmagens. E mesmo durante as filmagens, ele tem sido o meu coadjuvante
principal, o realizador comigo. Estamos a avançar. Os primeiros dias,
curiosamente, foram muito fáceis, porque os jovens estavam tão ávidos, com
expectativas muito altas para iniciarmos as filmagens. Agora, na parte final
das filmagens é que se nota já algum cansaço. É normal, porque levamos imenso
tempo nas filmagens e depois com o sol que se faz na Guiné-Bissau neste
momento, filmar em altas temperaturas às vezes não tem sido fácil. Mas tenho estado
a falar com jovens, a incentivá-los, a mostrar que estamos a fazer um trabalho
que vai ficar na história deste país, porque estamos a falar de um tema que
toca a todos ou que devia tocar a todos. Também trabalhamos com algumas pessoas
já com experiência, o Luís Morgado Domingos o Tio Silva, a Fati, a Verónica, o
Albino. São pessoas que já têm alguma experiência porque trabalharam também com
outros, como o Flora Gomes e Sana Na N'Hada, que são os expoentes máximos do
cinema da Guiné-Bissau. Portanto, eu fui buscar algumas das pessoas que
trabalharam com estas duas personagens para virem emprestar a sua experiência,
a sua sapiência, ao filme 'Minina di Bandeja'. Fizemos aqui uma mescla da
juventude e da experiência de pessoas que já estão no cinema da Guiné-Bissau.
RFI : Encaminha-se agora a fase de
pós-produção, a montagem e a fase praticamente final da preparação do filme.
Como é que encaras esse novo período agora do filme 'Minina di Bandeja'?
Mussa Baldé : A minha grande preocupação, neste momento, é arranjar
recursos para esta fase. Nesta fase da captação do filme, nós conseguimos, com
mais ou menos dificuldades, levar o barco a bom porto. O problema agora é como
vamos arranjar recursos? Onde vamos arranjar recursos? Neste momento estamos na
fase da pré-edição. Vamos entrar na fase de edição, depois na pós-produção do
filme que pretendemos fazer em Portugal, a pós-produção e a correção das cores,
da luz, do som e inserção de legendas. O filme é falado em crioulo, mas a minha
intenção é meter legendas em francês, português, inglês e espanhol, porque é
minha intenção pôr este filme no circuito internacional do cinema, sobretudo
nas mostras, nos festivais, mostrar esse filme porque o tema é actual. O tema
está na agenda mundial. É um assunto que preocupa quase todos os países da
África subsaariana, particularmente a Guiné-Bissau. Vamos fazer aqui na
Guiné-Bissau a pré-edição e a edição. Depois vamos para Portugal fazer a
pós-produção do filme. Esperamos ter os recursos necessários para fazer esse
trabalho, que não será também um trabalho fácil.
RFI : Quais são as tuas expectativas
relativamente a este filme? Pensas que até ao final do ano vai estar nos ecrãs?
Mussa Baldé : Sim, decididamente, o filme tem que estar nos ecrãs
até Dezembro. Não tenho uma data precisa. Quando é que vamos acabar todo este
trabalho da edição e da pós-produção? Não sei, porque há muita coisa que eu não
controlo. Mas decididamente, até ao final deste ano de 2025, o filme vai estar
em exibição. As pessoas vão poder ver o filme. Devo salientar uma coisa: o
filme não será comercializado. O filme vai ser doado, digamos assim, às
organizações que trabalham nesta temática dos direitos das meninas na
Guiné-Bissau. Todas as organizações que trabalham nesta temática vão ter uma
cópia do filme. Basta a organização solicitar por carta e através de um
dispositivo de armazenamento, um disco, uma pen. Recebe uma cópia do filme. A
minha intenção é mostrar o filme, como eu disse nas mostras internacionais nos
festivais. Mas há uma meta que eu tenho fixado, que é um festival de
audiovisual que acontece na Suíça, sobre o material ligado aos Direitos Humanos
e a minha intenção é que o filme 'Minina di Bandeja' esteja nesse festival para
que o mundo possa ver também a minha perspectiva sobre estas duas temáticas.
Queria salientar que contei com alguns parceiros que eu não gostaria de
descurar ou não mencionar nesta entrevista, parceiros que acreditaram neste
projecto desde o início: a UNICEF e o Banco da África Ocidental, que é um banco
aqui da Guiné-Bissau. Mas também tive outros parceiros que não apoiaram
financeiramente, mas ainda assim, a sua contribuição foi muito determinante
para esta fase da captação do filme: a Liga dos Direitos Humanos desde o
início, o Comité Nacional de Luta contra as Práticas Nefastas, a Casa do
Acolhimento das Crianças em Risco, a AMIC, a Associação Amigos da Criança da
Guiné-Bissau, a Federação de Futebol e outras instituições que, de uma forma ou
outra, ajudaram à realização deste filme e alguns amigos, particulares, que me ajudaram
com escritórios, com carros, com gasóleo. A ajuda de toda a gente foi
determinante ou tem sido determinante até aqui. Espero que mais instituições
que nós contactámos vão se interessar por este projecto do filme e vão ajudar a
conclusão do filme 'Minina di Bandeja' . ANG/RFI