Centenário A Cabral/Investigador Sumaila Jaló diz ser necessário resgatar o pensamento revolucionário de Cabral para as lutas de hoje"
Bissau, 12 Set
24 (ANG) - O investigador guineense, Sumaila Jaló, participou na mesa redonda
sobre Cabral e a
Juventude: um debate inter-geracional.
O estudante em doutoramento no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra afirma ser preciso "resgatar o pensamento revolucionário de Amílcar Cabral - enquanto ideologia progressista - para as lutas de hoje".
Sumaila Jaló: Existe há uma transdimensão em que podemos falar
dessa relação de Cabral com a juventude. Uma primeira dimensão que é a dimensão
da ausência, que consiste nas tentativas de apagamento do legado da luta e da
acção revolucionária de Amílcar Cabral e dos seus camaradas no espaço público,
tanto no sistema educativo como no espaço dos partidos políticos para a
mobilização pública. No próprio PAIGC que ele ajudou a fundar que, a partir do
golpe de 14 de Novembro de 1980, se desligou com a sua base ideológica
fundadora, pan africanista, socialista e que pugna pelo progresso do povo
realizado pela mobilização do próprio povo, mas também uma tentativa muito
actual de certos poderes políticos identificados no caso da Guiné-Bissau, que
decretam a celebração do Dia da Independência a 16 de Novembro, dia das Forças
Armadas e não 24 de Setembro, que é o dia da proclamação unilateral histórica
da independência da Guiné-Bissau. Uma tentativa de militarização do poder, mas
também, muito recentemente, através de um despacho que impede a fixação de
cartazes no espaço público para a celebração do centenário. Primeiro esta
ausência, depois a presença na cultura em toda a sua dimensão na produção
cultural. A figura de Cabral e o legado da luta aparece e a partir da produção
cultural que a juventude se conecta com o legado de Amílcar Cabral. Através
disso, os movimentos sociais que, tanto na Guiné-Bissau como em Cabo Verde,
assim como nas suas diásporas, se mobilizam com base no pensamento
revolucionário de Amílcar Cabral, para a transformação. Finalmente, há uma
dinâmica de resgate da figura de Cabral.
O que eu acredito é que essa dinâmica de
resgate não seja no sentido de salvar o pensamento do Cabral, porque isso está
salvo, 51 anos depois do seu assassinato, nós ainda falamos de Cabral e
celebramos Cabral e o seu pensamento. O que nós precisamos é um resgate para o
pensamento revolucionário de Cabral enquanto ideologia progressista e de
transformação da realidade que nos sirva para as lutas de hoje, as lutas para a
emancipação do povo guineense e cabo-verdiano, mas sobretudo para a construção
de uma nova vida na paz e na dignidade em Cabo Verde, na Guiné-Bissau, em
África e para toda a Humanidade.
E porque é que acontece esse
distanciamento entre as classes políticas, com a sociedade civil e este legado
de Amílcar Cabral?
Este desligar de entidades políticas,
particularmente partidos políticos com as bases populares que mobilizam deu-se
primeiro, como o próprio PAIGC, que é um movimento revolucionário de massas na
sua origem. Mas a transição de sistema de partido único para a liberalização
económica e depois para a abertura política. Não estou a dizer que estas
aberturas não deviam ter acontecido, mas não são motivos para um partido dessa
dimensão esvaziar do seu espaço o pensamento comprometido com a transformação
dessas massas populares. O que aconteceu foi o aburguesamento das lideranças
desses partidos políticos que repeliu a sua relação com as massas populares e
essa desconexão começou a gerar desconfianças desse próprio povo que alimentou
o surgimento do PAIGC com esta estrutura. Esta dinâmica se alastrou para todos
os outros partidos criados com a abertura democrática: Em vez de o partido ser
uma instituição ao serviço da população, o partido passou a transformar-se em
entidades que se servem do erário público produzido pela população e pela massa
popular.
Amílcar Cabral defendia a educação
política dos jovens. Acreditava que o futuro da África dependia da formação das
novas gerações conscientes e preparadas, Muitos jovens foram educados pela
visão de auto-determinação e igualdade. O que é que aconteceu a estes jovens?
Onde é que estão estes jovens hoje? E o que é que fizeram pelo país?
Há duas questões aqui: Quando o PAIGC e
o resto dos outros partidos políticos se transformaram em espécies de castas
para incorporar interesses pessoais e não interesses colectivos, quadros até
formados por esses partidos, na linha progressista de servir para a
transformação da realidade, para o benefício de todos. Quadros que não se
inscreveram na lógica de instrumentalização do partido para agendas
particulares tinham duas possibilidades ou continuar e acomodar-se na
destruição da base ideológica fundadora do PAIGC, por um lado, dos outros
partidos que queriam ser alternativas ou então vão fora do partido político. O
que acontece? Por um lado, há uma fuga de quadros, aqueles que recusaram
acomodar se no sistema para não ser cúmplice da destruição do nosso país, na
Guiné-Bissau, também em Cabo Verde encontrou outros refúgios fora dos nossos
países.
Mas há aqueles outros que se acomodaram
nos espaços das ONGs ou arranjaram outra forma de sobrevivência, mais uma vez,
para não fazerem parte do sistema a destruir o país. Só que nenhuma dessas
opções funciona como alternativa a esses lugares de mobilização política. O que
nós devemos começar a pensar em fazer é criar alternativas de todas as
dimensões, tanto no espaço político quanto no espaço social e de mobilização
cultural. Três dimensões fundamentais para construção de qualquer sociedade no
mundo, disputarmos esses espaços, afirmarmos nos nesses espaços com novas
agendas viradas para o progresso. O progresso nada mais é do que trabalhar
colectivamente, consentir sacrifícios que são indispensáveis consentir para a
melhoria das nossas vidas. Porque a luta de libertação, o legado de
Amílcar Cabral e dos seus companheiros, se continuar só no domínio teórico e
não for concretizado no domínio da transformação da vida das populações, não
serve para nada que não seja teoria e que não encontra a prática que transforme
a realidade das nossas mobilizações.
Este legado de Amílcar Cabral foi
esquecido pelos nossos representantes?
Foi. Primeiro porque o pensamento de
Amílcar Cabral é sólido e é um pensamento que não dialoga bem com demagogia,
que não dialoga bem com traição, que não dialoga bem com corrupção, que não
dialoga bem como mentir ao povo. É um legado assentado em princípios éticos,
morais e de compromisso patriótico que as actuais lideranças políticas não têm
na sua gramática política. Por isso, não estão interessados em conhecer Amílcar
Cabral.
Amílcar Cabral e o seu pensamento
inquietam. Amílcar Cabral e o seu pensamento fazem-nos perguntar onde estamos e
por onde vamos caminhando. Lideranças políticas interessadas em construir
castas, em consolidar burguesias para a captura do erário público, para
interesses localizados e não colectivos, nunca estarão interessados na
afirmação e consolidação do pensamento cabralista nas nossas sociedades. Por
isso é que esse pensamento é repelido através de decretos e através de
despachos que pretendem apagar do espaço público. Mas isso é impossível porque,
mesmo que existam mais do que esses decretos, o pensamento de Cabral que já se
consolidou 50 anos na academia, na cultura, nos movimentos sociais e mesmo
nesses partidos políticos, apesar de uma lógica instrumentalizada e demagoga.
Amílcar Cabral tornou-se um símbolo de
luta contra o colonialismo e a opressão. Nos últimos 50 anos surgiram líderes
que foram ou são vistos hoje como mentores ou guias pelos mais jovens?
Não têm surgido muitos. Há líderes que
nós podemos reconhecer que tenham feito esforço em Cabo Verde e também para a
África. Nós devemos reconhecer a força, a resistência e a longevidade do compromisso
patriótico do comandante Pedro Pires é um exemplo. Apesar de todas as
dificuldades com que se confrontou no contexto em que foi primeiro-ministro de
Cabo Verde e Presidente da República, manteve o vínculo com os valores da luta
de construir o bem-estar dos nossos povos. Ensinou-nos a pensar na nossa
unidade, que é um legado histórico, mesmo que essa unidade não exista numa
dimensão binacional.
No caso da Guiné-Bissau, nós tivemos
Presidentes da República, como o Luís Cabral, que herdou uma linha, se esforçou
a afirmar nos primeiros anos da independência. Depois houve três Presidentes da
República, a quais eu tenho muito respeito na Guiné-Bissau.
Malam Bacai Sanhá pelo seu carácter. Em
tempos em que tipos de liderança que tivemos na altura não só se divorciaram
destes princípios éticos e morais, mas se desafiaram com o próprio povo. Se nós
olharmos para todos os Presidentes da República na Guiné-Bissau, podemos olhar
para esta figura de Malam Bacai Sanhá como aquele que não teve muito tempo na
Presidência, mas que nos ensinou a construir paz, estabilidade, mesmo que seja
a fogo e ferro. Temos o Serifo Nhamadjo
e o Henrique Rosa, que mesmo no caso do Serifo Nhamadjo, tendo sido Presidente
num contexto de golpe de Estado e tenha havido muitas interpretações dessa
altura. A forma como foi Presidente da República. Estamos a falar de um Presidente que chegou à
Presidência da República através de um golpe de Estado, mas que teve um
desempenho ético e moral de larga dimensão, melhor que a situação actual. São
exemplos que não são perfeitos, exemplos criticáveis, mas exemplos aos quais
nós podemos olhar para fazer melhor, sobretudo melhor, no sentido que eles não
conseguiram, no sentido de recuperar o pensamento cabralista enquanto base
ideológica para olhar para a realidade, compreender a realidade e transformar a
realidade para o nosso bem-estar.ANG/RFI
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