Lisboa/Investigação liga Guiné-Bissau e Portugal para retraçar presença de populações escravizadas
Bissau, 04 Out 23 (ANG) - Cacheu, na Guiné-Bissau, e Monte de Vale do Lachique, junto a São Romão do Sado em Portugal, estão a ser alvo de um projeto de investigação que quer aprofundar a correlação entre a circulação de pessoas escravizadas, o seu modo de vida e o ambiente envolvendo arqueólogos, historiadores e geólogos para retraçar os passos dos africanos que vieram de forma forçada para a Europa.
O que é que a antiga capital da Guiné-Bissau e um
monte junto à aldeia de São Romão do Sado têm em comum? Por estes dois lugares
passaram populações escravizadas desde o final do século XV. Conhecer melhor
estas populações, mas também o impacto que tiveram nos respectivos ecossistemas
é o objetivo do projeto “Ecologias da
Liberdade, materialidades d escravidão e pós-emancipação no mundo Atlântico"
que junta arqueólogos, historiadores e geólogos para retraçar os passos
dos africanos que vieram de forma forçada para a Europa.
O projeto é liderado por Rui Gomes Coelho, professor na universidade de
Durham, no Reino Unido, que em entrevista à RFI descreveu o impacto ambiental
do tráfico de pessoas, nomeadamente nas culturas locais, como o arroz, que
poderá ter sido trazido para Portugal por populações escravizadas, uma hipótese
que está a ser analisada pelos investigadores envolvidos nesta pesquisa.
"Decidimos escolher estes dois locais em função da presença de
estuários, que são locais muito propícios para se recolher sedimentos que podem
ser utilizados para este tipo de investigação. O que acontece também no caso de
Cacheu na Guiné-Bissau e do Monte de Vale do Lachique, em Portugal, é que
estes estuários estão ligados à emergência de um tipo de cultura agrícola que é
muito importante neste período, que é o arroz. O arroz africano emerge na
África Ocidental a partir da Idade Média e depois expande-se em direcção à
costa, na região onde está Cacheu, e é possível que o arroz se tenha
desenvolvido nessa época para alimentar o tráfico de pessoas. E, em Portugal, o
arroz aparece no Sul de Portugal, não se sabe ainda quando, há pesquisadores
que apontam para o século XVIII ou XIX e outros para o século XVI ou mesmo
século XV, estando relacionado com o tráfico de pessoas que tinham
conhecimentos e que os levavam consigo, nomeadamente sobre práticas
agrícolas", explicou Rui Gomes Coelho, detalhando que amostras dos sedimentos
dos dois estuários estão agora a ser analisadas.
Em Cacheu as escavações decorrem junto à antiga casa comercial, onde
está instalado o Memorial da Escravatura e Tráfico Negreiro, e já foram
encontrados artefactos do início da ocupação portuguesa, enquanto em
Portugal a investigação decorre em parceria com a Câmara Municipal de Alcácer
do Sal e as escavações já mostraram a construção de um monte alentejano no
final do século XV, que poderia ter trabalho escravo.
Este é um projeto que visa também saber mais sobre
o quotidiano das pessoas escravizadas, já que há poucos registos documentais -
com o site Slave Vpyages a contabilizar pelo menos 12 milhões de
pessoas escravizadas em diferentes rotas durante os últimos séculos - sobre
estas pessoas.
"Quando pensamos em pessoas escravizadas, pessoas cuja humanidade
era questionada nesse contexto, e o que a arqueologia acaba por fazer é uma
espécie de aproximação sobre o que era a experiência vivida dessas pessoas, é
encontrar o que as pessoas realmente tocaram, as coisas que deitaram fora, que
comeram, a vida quotidiana. Estas coisas não têm um retrato, não apresentam uma
fotografia, mas é o que de mais próximo conseguimos ter daquilo que foi a vida
destas pessoas. Isto acaba por nos fornecer uma imagem mais afetiva do que foi
a experiência destas pessoas", indicou Rui Gomes Coelho.
Este é um trabalho feito em parceria não só do Memorial da
Escravatura e Tráfico Negreiro na Guiné-Bissau, mas que em Portugal conta com
as associações Djass - Associação de Afrodescendentes e a Associação
Batoto Yetu Portugal.
"O envolvimento das comunidades tem a ver com o facto de este
projeto ser comprometido com a nossa sociedade, é um pojeto científico sobre
uma realidade passada. A partir do presente, olha para o passado e tenta dar
corpo ao que acontece agora no presente. E temos de envolver os parceiros que
de forma mais direta têm manifestado interesse e tentam responder a estas
questões. E essas são as partes interessadas que refletem os legados deste
grande processo histórico que é o tráfico de pessoas escravizadas", detalhou o académico.
O projeto "Ecologias da liberdade, materialidades da
escravidão e pós-emancipação no mundo Atlântico" vai durar até ao fim de
2024 e tem o apoio da National Geographic Society, a Rust Family Foundation,
assim como a Fundação para a Ciência e Tecnologia de Portugal, e
o Joukowsky Institute for Archaeology and the Ancient World da
Universidade de Brown. ANG/RFI
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