Cutura/Projecto celebra a música de
Cabo Verde e Guiné-Bissau sem paternalismo nem revivalismo
Bissau,
08 jun 20 (ANG) – O projeto Bandé-Gamboa, que junta duas bandas
intergeracionais da Guiné-Bissau e Cabo Verde, lança este mês o seu disco de
estreia, à procura de conquistar jovens em África e no Ocidente, sem
paternalismo nem filtros estéticos presos nos anos 70.
Com a
chancela da editora francesa Heavenly Sweetness, o projecto criou dois grupos
“all-star” – um de Cabo Verde, outro da Guiné-Bissau – com músicos novos e
velhos que recriaram canções antigas, navegando na contracorrente da maioria
dos trabalhos hoje feitos no Ocidente, com editoras fixadas na sonoridade dos
anos 70 do continente africano, contou à agência Lusa o produtor do projecto
Bandé-Gamboa, Francisco “Fininho” Sousa.
No
livro que acompanha o álbum, o também DJ português explica que, após 20 anos de
uma “procura obsessiva” por vinis e CD africanos, encontrou “três aspectos
cruciais” nas edições contemporâneas e “revivalistas” da música de África: os
discos raramente são comprados por africanos ou afro-descendentes; a dimensão
da cultura africana fica reduzida a géneros como reggae, soul, funk ou rock
psicadélico; e os compradores focam-se numa “determinada estética ‘old school’
que transformou uma fase musical arbitrária no padrão actual da música africana
no Ocidente”.
Tendo
isso em conta, quando Francisco Sousa foi abordado pelo responsável da Heavenly
Sweetness, o produtor francês Guts, para fazer uma compilação, propôs-lhe fazer
algo que fosse contra a norma: “um projecto que fosse um murro na mesa”.
Depois
da luz verde da editora, decidiu avançar com a criação de duas bandas, uma de
músicos cabo-verdianos e outra de músicos guineenses a viver em Lisboa, para
recriarem canções antigas dos dois países, com objetivos distintos.
No caso
da Guiné-Bissau, procurou fazer-se “versões frescas e contemporâneas” do gumbé,
estilo pouco conhecido fora do país e que foi sendo gravado “por muitos
artistas e com ideias bastantes diferentes do que ele deve ser”.
Já em
Cabo Verde, decidiu testar-se a versatilidade do funaná e os seus limites, que
não tem os problemas de identidade nem falta de reconhecimento internacional do
gumbé,
Chegando
ao estúdio, Francisco Sousa fez algo “que os produtores na Europa têm muita
dificuldade em fazer: Transferir muito mais o poder para os músicos e mudar de
uma postura quase hierárquica para uma postura muito mais de observador”.
“Trabalhar
num contexto pós-colonial, numa antiga capital de um império colonial, com a
diáspora dos países que foram colonizados é complicado e obriga a ler para não
trocar os pés pelas mãos. A mim, só me restou criar um ambiente convidativo
para os músicos trazerem as suas ideias para estúdio e, depois, de uma forma
suave, escolher ou direccionar”, contou à Lusa Francisco.
Apesar
de reconhecer o serviço positivo que editoras ocidentais tiveram na
redescoberta de música dos anos 60, 70 e 80, de África, Francisco Sousa realça
que, por vezes, algumas dessas compilações têm um olhar algo paternalista,
pintado por “um imaginário tropical exótico que é tóxico”.
O
consumo da música africana no ocidente está tão enraizada nos anos 70 que, até
a mostrar o projecto Bandé-Gamboa a conhecidos, algumas pessoas não conseguiram
ultrapassar o facto de as canções não terem o “grão” e o filtro estético
daquele tempo.
“Dizem
que está limpinho demais”, recordou.
Para o
produtor do projecto, as editoras, ao focarem-se nas franjas com influências
ocidentais, perdem uma oportunidade de “trazer novos fragmentos de cultura cá
para fora”.
Além
disso, Francisco Sousa considera que as editoras devem pensar sobretudo “que
não estão a salvar ninguém”.
“Estas
bandas tiveram o seu público, venderam os seus discos, muitas delas fizeram
muito dinheiro, outras nem por isso. Mas a lógica do ‘white savior’ [salvador
branco] é muito perigosa”, acrescentou.
Nesse
sentido, o projecto Bandé-Gamboa não surge dessa ideia de salvar uma banda ou
de a revelar ao mundo, mas antes numa ética de partilha – “não mais do que
isso”.
Ao
mesmo tempo, há o desafio de tentar agradar ao público dos dois continentes,
até porque reeditar bandas antigas africanas não interessa aos jovens desses
países.
Hoje,
reeditar na Guiné-Bissau os Super Mama Djombo, banda de discos raros e muito
procurados no Ocidente, seria como reeditar os Pink Floyd para uma geração
americana jovem: “É lindo, mas estão a ouvir outras coisas”.
“É de
louvar essa ideia do Francisco”, disse à Lusa Juvenal Cabral, dos Tabanka Djazz
e director artístico da banda guineense do Bandé-Gamboa.
O
baixista compreende “a ideia das editoras ocidentais em pegar nas coisas
gravadas nos anos 70”, porque para o público europeu e americano “é algo novo”.
“Mas
para nós, africanos, é algo que estamos cansados de ouvir. Não há novidade
nenhuma”, notou, frisando que, com este projecto, mesmo repescando músicas
antigas, há “uma lufada de ar fresco”.
Na
parte do disco dedicado à Guiné-Bissau, aproveitou-se para recuperar também
algumas músicas gravadas na Rádio Nacional deste país, em gravações “muito
rudimentares” e retrabalhá-las, com novos arranjos.
“Foi um
processo muito gratificante. Deu-me muito prazer fazer este trabalho”, afirmou
Juvenal Cabral, esperando que o projecto permita também um maior reconhecimento
internacional do gumbé, o estilo que reflecte o mosaico de um país com menos de
dois milhões de habitantes, mas com mais de 30 etnias.
O
director musical da banda cabo-verdiana do projecto, Lúcio Vieira, também se
congratulou com a ideia, tendo aceitado o convite de Francisco sem hesitar,
ainda para mais quando a proposta era testar os limites do funaná.
“Eu
cheguei em 1984 a Portugal e já ouvia muita fusão. Vinha com uma ideia muito
avançada e, quando cheguei, se fizesse uma malha ‘fora da caixa’ levava logo na
cabeça”, recorda, salientando que o disco foi uma oportunidade de mostrar o que
gosta mesmo de fazer: experimentar e inovar.
“É uma
ideia refrescante. É uma forma também desse projecto abrir a cabeça de outras
pessoas que vão ouvir e saberem que há inovação para além da tradição, podemos
fazer outras coisas, sem magoar o que já é feito pelos nossos mais velhos”,
vincou Lúcio Vieira.
O
disco, que é lançado a 12 de Junho em formato físico e digital, conta com seis
temas para cada país, sendo também uma homenagem a Amílcar Cabral, cofundador
do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde e um dos maiores
símbolos da luta pela independência dos dois países.
A banda
da Guiné-Bissau, dirigida por Juvenal Cabral, é composta por Eric Daró,
Iragrett Tavares e Micas Cabral, nas vozes, Calú Ferreira (teclas), Eliseu
Imbana e Sidia Baio, nas guitarras, Toni Bat (bateria), Ernesto da Silva
(percussão) e Elmano Coelho (saxofone).
Da
formação cabo-verdiana, dirigida por baixista Lúcio Vieira, fazem parte Celso
Évora, Débora Paris e Kinha Andrade, nas vozes, Daya Neves (teclas), Ivan Gomes
(guitarra), Cau Paris (bateria), Djair de Pina (percussão) e Elmano Coelho
(saxofone). ANG/Inforpress/Lusa
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