quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Cultura


Matar bebés na Guiné não é crime, é tradição

Bissau, 21 Set 16 (ANG) - O consagrado músico Binham Quimor é uma das vitimas dessa pratica e tinha um ano quando foi abandonado para ser levado pela maré porque, reza a tradição, algumas crianças são espíritos que têm que ser devolvidos à natureza.

Binham, 38 anos, tem uma canção sobre o pai que nunca gravou na sua discografia: aquela em que conta como ele o quis matar quando ainda era bebé.

“Acho que ele pensava que estava certo. Não tenho nada para odiar o meu pai”, conta o cantor Binham Quimor, um dos cantores mais famosos da Guiné-Bissau e que dá espetáculos em todo o mundo.

Binham tinha um ano quando foi abandonado para ser levado pela maré porque, reza a tradição, algumas crianças são espíritos que têm que ser devolvidos à natureza.

A lei da Guiné-Bissau protege este costume e atenua a pena de quem matar bebés, seguindo a crença.
Mas nem era preciso, porque as comunidades encobrem os casos logo à partida e nunca ninguém foi investigado ou julgado.

O pai de Binham encomendou a cerimónia porque o filho adoecia com frequência e estava a levar muito tempo para começar a andar, sinais de uma “criança irã“.

Deficiência, convulsões e gémeos são outros motivos para abandonar bebés que são também “bodes expiatórios” de “coisas negativas”, como “a morte da mãe no parto”, explica Filipa Gonçalves, 28 anos, psicóloga e coautora do estudo “Crianças irã: uma violação dos direitos das crianças na Guiné-Bissau“.

No decurso deste estudo, foram entrevistados 20 membros de famílias que disseram ter crianças possuídas por espíritos.

Por vezes, basta um bebé cair em subnutrição, o que é comum na Guiné-Bissau, para ter atrasos no desenvolvimento e ser sentenciado.

Um curandeiro chega a receber 150 euros para realizar a cerimónia em que a criança é abandonada, conta Laudolino Medina, presidente da associação Amigos da Criança, AMIC.

“Os detalhes do ritual dependem da etnia”, mas de uma forma geral envolvem experiências com comida que os ‘irãs‘ supostamente apreciam, consoante sejam espíritos de terra ou de água.

Aos 44 anos, uma residente em Bissau, neta de uma curandeira, aceitou recuar à infância e falar sobre as cerimónias que via a avó fazer. Conta a história sob anonimato.

“Eu via pais levarem filhos, alguns com quatros anos, e quando caía a noite realizava-se o ritual com farinha e ovos – em que a criança, sem autonomia para se deslocar ou orientar, era abandonada ao ar livre”, conta.

Depois, na casa da avó curandeira, havia festa patrocinada pelos pais, que “levavam porco, cozinhavam e davam vinho”.

Luís Fonseca / Lusa

Sem comentários:

Enviar um comentário