quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

                   Cultura/Mû Mbana levou a música dos Bijagós a Paris

Bissau, 17 Fev 22 (ANG) -  O músico Mû Mbana foi um dos artistas lusófonos a subir ao palco do Thêatre du Châtelet, em Paris, este domingo, e transformou a sala num espaço de poesia e murmúrio, de contemplação e espanto.

O cantor, poeta, compositor e multi-instrumentista apresentou canções do seu trabalho "mais guineense": INÊN. Estava simplesmente acompanhado pelos sons do simbi, bënsuni e tonkorongh, instrumentos que ele resgatou de séculos passados e que fazem agora parte da sua história. Essa história começou quando era muito menino, com apenas três ou quatro anos. Era uma vez… 

RFI: A primeira frase da sua biografia na sua página web explica: “Tudo começou quando tinha três anos: antes das notícias da rádio, punham uma música de balafon que me fazia dançar”… Foi mesmo assim que tudo começou?

Mû Mbana, Músico: Começou comigo e a minha família a darmo-nos conta que eu tinha uma certa conexão com a música porque eu era pequeno e cada vez que soava essa sintonia eu dançava. A minha família ria-se. Era engraçado, era um miúdo de três ou quatro anos a curtir com uma música que é uma sinfonia que se põe antes das notícias. Do meu despertar interno e externo quanto à minha conexão com a música, acho que esta é a memória mais antiga, a primeira que tenho.

Nasceu na ilha de Bolama, nos Bijagós, cresceu num mundo pleno de música, mas foi para a Europa para estudar arte em Portugal e acabou por formar-se na música, de forma académica, em Barcelona… Conte-nos um pouco destas escolhas….

Fui da Guiné para Lisboa, morei em Portugal vários anos e estudei um pouco a construção civil, o desenho técnico da arquitectura e depois decidi estudar música. Estive a ponto de ir para o Hot Club de Jazz, em Lisboa, mas afinal foi para o Taller de Músics de Barcelona para estudar Harmonia Moderna, linguagem musical e tudo isso. Tinha necessidade de ter ferramentas a nível de composição para poder ampliar a minha capacidade como compositor.

Pelo caminho, fez 20 anos de pesquisa só para resgatar instrumentos tradicionais da Guiné-Bissau, algo que transpôs para a sua música. A sua música é uma fusão das sonoridades do passado com as novas tendências?

É mesmo assim. Toco esses instrumentos, o simbi, bënsuni, tonkorongh , e toco a minha música actual, uma música que eu incarno agora, neste momento, como alguém que vive no tempo presente. Eu sinto-me confortável sendo o que sou no momento presente. Isso não me impede de recuar no tempo e interpretar músicas tradicionais – música antiga da Guiné ou da África Ocidental de compositores clássicos, antigos mesmo. Mas as minhas composições refletem tudo o que eu adquiri até aqui, até hoje. Evidentemente quem ouve vai ouvir música de um músico africano da Guiné, mas vai notar que esse músico talvez tenha vivido uma experiência um pouco mais ampla do que simplesmente um músico que toca música tradicional da Guiné e instrumentos tradicionais com aquela linguagem estritamente tradicional.

Falou-me dos instrumentos tradicionais, vemos aqui o simbi, o bënsuni e o tonkorongh. Que instrumentos são estes?

Esse simbi que está aí é um simbi do povo balanta – porque há vários simbis. É um instrumento grande que só se pode tocar sentado e é para acompanhar a voz, para acompanhar a dança, para acompanhar histórias. É o meu instrumento, para mim é o instrumento de cordas com o qual me conecto mais para acompanhar a minha voz. São instrumentos antigos, muito antigos. Aqui na Europa quando falam de música antiga pensam no Barroco. Nós, quando falamos de música antiga, pensamos no Egipto antigo, ou seja, estamos a falar cinco mil anos, seis, sete, dez…porque esses instrumentos estão gravados nas pedras de Gizé e de Assuã e todos os lugares onde o nosso povo viveu e construiu civilizações antigas.

São instrumentos que contam muitas histórias. E que histórias é que você conta nas suas músicas? São histórias poéticas, são histórias de vida, são histórias políticas, são reivindicações?

Hؘá tudo isso e mais. Há histórias do dia-a-dia, comuns, como uma mulher casada, uma dona de família, uma matriarca que a certa altura da sua vida tem um amante e fala dessa vivência. Histórias também de alguém que se procura fora de si até uma certa altura dar-se conta que fora não encontra o que realmente está à procura e tem que voltar a olhar para dentro e buscar dentro de si porque é o caminho mais perto, afinal, para se encontrar. Todas essas histórias acontecem nas minhas músicas. Evidentemente que também tem histórias de amor e observações de beleza do que existe. Há questões existenciais também, postas na primeira pessoa, mas também um convite à reflexão conjunta. Há muitas questões, há muitas histórias contadas no que eu canto.

Editou vários discos, o INÊN será talvez o mais guineense dos seus discos?

Exactamente. Eu voltei à Guiné [para o fazer] e foi o meu décimo disco - INÊN quer dizer dez, mas também quer dizer mãos porque era uma reflexão também sobre o poder transformador das mãos. Tudo o que concebemos, as mãos acabam por materializar e executar. Foi o meu primeiro disco apresentado na Guiné. Primeiro fiz uma apresentação oficial do INÊN na Guiné-Bissau e depois no resto do mundo.

 

Há outro disco que nos faz viajar muito até à Guiné-Bissau, o Nô Tchon…

É muito guineense esse disco, mesmo tendo músicos de jazz à volta, o grande contrabaixista Javier Colina e o flautista Juan Carlos Aracil. É um disco muito guineense, muito, muito mesmo na sua essência. É o mais recente publicado, mas tenho agora vários discos acabados mas ainda não publicados.

Então, o que vamos ter em breve?

Tenho uma trilogia, um disco em três volumes gravado em Dezembro de 2019 em São Paulo. Tenho um outro disco gravado com o Mauricio Caruso, um guitarrista de São Paulo que mora em Santiago de Compostela e tenho dois discos meus a solo que também estão prontos. Tenho ainda um outro disco de música electrónica, com o DJ Panko que está pronto. Estou com cinco discos nas mãos por lançar.

Um disco electrónico vai então aliar um ritmo altamente contemporâneo a um ritmo altamente ancestral, um pouco como os Tinariwen. Como é que fez essa aliança?

É uma aliança fácil de fazer. O electrónico tem todo esse leque de sons que, a priori, parecem estranhos, mas todos esses sons já existem na natureza e há muitos instrumentos que fazem esses sons, só que quando é expressado de forma sintética parece novo. É um casamento muito interessante, esse casamento entre voz humana com sons electrónicos. Eu e o DJ Panko entrámos nessa viagem e estamos nela já há muitos anos, só agora é que decidimos tirar um disco.  

Na sua música, temos as cordas dos instrumentos tradicionais, temos a sua poesia, temos a sua voz, temos uma componente muito melódica. Como é que o Mû Mbana descreve a sua música?

Eu não sou a pessoa indicada para descrever a minha música. Eu faço a música, eu vivo a minha música, mas muito poucas vezes oiço a minha música. Eu oiço a minha música só quando estiver metido numa produção e a trabalhar numa produção. Depois disso, fico tão exausto e cansado que já não consigo nem ouvir. Preciso de uma distância de mais de dez anos para ouvir a minha música e ficar tranquilo, sem a julgar, e só a ouvir como um ouvinte, como quem ouve a música para viajar com ela. Mas estou consciente que tento sempre estar presente, não consigo tocar uma música só porque ela soa bem e as pessoas gostam. Se eu nesse momento não estiver a sentir essa vibração que essa música transmite, não toco. Tenho que viver aquilo, aquilo tem que fazer vibrar as minhas células todas, senão não a consigo incarnar. Se eu não estiver pronto para chorar uma música ou rir uma música, não a posso cantar só porque é bonita ou porque as pessoas gostam ou porque teve êxito.

A sua música, como disse, está muito ancorada aos sentimentos, às sensações, mas também está muito agarrada à terra. Ela comporta alguma mensagem política também?

Comporta muitas vezes.

Neste momento, a Guiné-Bissau está a viver novamente uma situação muito delicada. Está preocupado?

Evidentemente que estou preocupado. Eu cheguei há nove dias da Guiné-Bissau. Quando houve isso, eu estava lá, estava no meio da cidade a circular. Estou preocupado evidentemente. O problema político da Guiné e o que se deu lá agora há uma semana é só um reflexo da grande crise que a Humanidade vive actualmente – quando falo actualmente, temos de recuar bastante até aqui, não é actualmente hoje neste ano de 2022, falo de há 50 anos para trás, como observador da história, falo de tudo isso. Andamos numa crise profunda, existencial, a humanidade inteira. Todos os Presidentes da República que temos actualmente, com excepção de um ou dois, são empregados de multinacionais que estão a cumprir serviço e são marionetas. Portanto, a crise pela qual passa a humanidade actualmente é algo de muito mais profundo. O golpe na Guiné é uma coisa muito superficial e não pode ser visto como a parte mais grave do problema guineense, o problema guineense é uma coisa muito mais profunda.

O que significa para si apresentar o seu trabalho em Paris?

É a primeira vez que venho a Paris tocar e defender um projecto meu. Já estive duas vezes anteriores que vim para uma gravação de um disco do Silvano Miquelino que é um produtor brasileiro e percussionista e outra vez vim para a homenagem do Rémy Kolpa Kopoul, da Radio Nova, no Cabaret Sauvage, éramos muitos artistas. Esta é a terceira vez e é a vez em que venho realmente mostrar o meu trabalho à cidade de Paris, ao público francês e habitantes de Paris e é muito importante para mim. Aliás, é de extrema importância para mim porque eu estou consciente que Paris é a meca para a música africana em geral, para a arte africana em geral e para a arte em geral.

Participa no Théâtre du Châtelet no evento chamado “Mosaïque de Voix Lusophones”. Em França, quando se fala em lusofonia, muita gente franze o sobrolho porque não conhecem a palavra. Para si é importante alargar a Temporada Portugal-França à lusofonia?

Eu acho muito importante até porque a língua oficial da Guiné é o português, em Angola, Cabo Verde, Moçambique, São Tomé e Brasil também. E nós que herdámos o português ainda trabalhamos com a língua portuguesa, temos uma relação com a língua portuguesa que não se pode negar mesmo não sendo portugueses. Eu próprio às vezes levanto-me e escrevo em português, mesmo não sendo a minha língua principal com a que penso e sonho e murmuro dentro de mim.

Mas faço muita coisa em português, trabalhei muito para a língua portuguesa. Fiz um disco inteiro que se chama Casa Lua que é uma homenagem a uma poetisa alentejana que mora em Lisboa que é a Ana Patrício e esse disco ainda permanece oculto para o público português. Fazemos muito pelo desenvolvimento da língua portuguesa e pela expansão da língua portuguesa. Somos parte dessa expansão porque o português foi até à Guiné e devido a isso nós entrámos nesse universo lusófono. Então é importante que os eventos culturais que tenham a ver com a lusofonia nos tenham em conta, mesmo que depois nesses eventos nós não façamos nada em português. Mas que não nos excluam porque ainda somos parte do universo lusófono. ANG/RFI

 

 

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