Economia/”Europa deve deixar de ver África como "parente pobre”, diz Carlos Lopes
Bissau, 14 Fev 22 (ANG) - O economista guineense Carlos Lopes, docente na Universidade do Cabo, África do Sul, defende, em entrevista a RFI,que o continente deveria “insistir no perdão de uma parte substancial da dívida” , sublinhando que está na hora de se passar para uma fase “mais estruturante para as economias africanas: conseguir créditos mais acessíveis, ou seja, não fazer com que os africanos paguem taxas de juro tão elevadas".
Segundo a RFI, o antigo
secretário-executivo da Comissão Económica das Nações Unidas para África reitera
que “os africanos têm mais dificuldade em servir a sua dívida porque pagam
taxas de juro mais elevadas que o resto do mundo, taxas que estão associadas a
uma análise de risco que não é consistente”.
À margem da 35a Cimeira da União Africana,
que decorreu a 5 e 6 de Fevereiro, em Addis Abeba, na Etiópia, Carlos Lopes
perspectivou a Cimeira União Europeia - África que vai decorrer esta semana em
Bruxelas: “infelizmente não vai ser uma cimeira com grandes decisões
estruturais”. É preciso deixar de olhar para os africanos como “parentes
pobres que precisam de algumas migalhas”.
A pandemia da Covid-19 afectou
gravemente as economias africanas. O que é que se pode esperar para 2022?
Desde o princípio que não acreditei que a
recuperação económica iria ser tão rápida quanto foi nas outras regiões do
mundo, por causa de uma série de factores: a volatilidade dos preços das
matérias-primas que constituem cerca de 40% no caso do petróleo, e 60% no total
das exportações africanas; também pelo facto que temos uma grande volatilidade
das moedas que dependem da gestão macroeconómica externa ao continente, ou
seja, das economias mais poderosas e vimos que todas elas perderam valor; e,
finalmente, porque o problema da dívida viria a voltar, insistentemente, a ocupar
a maior parte do debate, muito embora o problema da dívida soberana seja um
problema mundial. Todos os países contraíram mais dívida. Estava ciente de que
África seria apontada como se tivesse uma espécie de problema singular, o que
não é o caso.
De qualquer das formas, tínhamos que contar com uma desaceleração
acentuada da actividade económica. Tendo uma economia muito informal, na maior
parte dos países africanos, isso teria consequências enormes do ponto de vista
fiscal e de protecção social. Foi isso que aconteceu e não creio que sejam
problemas que se podem resolver rapidamente. São problemas estruturais
que foram exacerbados pela pandemia.
Que problema é este da dívida africana? Porque é que a questão da dívida é mais grave em África do que no resto do mundo?
O indicador que mais se utiliza para julgar a dívida é o rácio
entre a dívida e o tamanho da economia, o PIB [Produto Interno Bruto]. O que
acontece é que África tem os rácios mais baixos do planeta, melhor do que a
África só a Noruega, Singapura, Suíça e alguns países do Golfo, monarquias que
têm grandes reservas de capital.
O facto de ter os rácios baixos e de ser a região do mundo que
menos pede dinheiro emprestado em relação ao tamanho das suas economias,
deveria ser um facto positivo, mas é um elemento secundário porque se fala
muito mais na capacidade de servir a dívida. É evidente que os africanos têm
mais dificuldade em servir a dívida porque pagam taxas de juro mais elevadas
que o resto do mundo.
Temos um debate um pouco "esquizofrénico" onde se fala
de que os africanos têm acesso a capital concessional, ou seja, com taxas de
juro muito baixas, quando na realidade os montantes disponibilizados são muito
poucos em relação ao tamanho da economia. Quando países muito ricos como a
Alemanha, Japão e Grã-Bretanha têm, de facto, acesso a capital até com taxas de
juro negativas. Eles são os que recebem dinheiro concessional, não os
africanos.
Defende
o perdão da dívida como defenderam vários chefes de Estado na cimeira?
Há um estigma associado ao perdão que é levantado pelas agências
de notação de crédito e também por grandes investidores. Mas, na realidade,
está demonstrado, sobretudo no princípio deste século, quando há uma drástica
redução da dívida existem mais possibilidades de crescimento e de melhorar a
gestão macroeconómica. Dever-se-ia insistir na questão do perdão de uma parte
substancial da dívida, mas Dever-se-ia sobretudo passar a uma outra fase mais
estruturante para as economias africanas: conseguir créditos que sejam mais
acessíveis e não fazer com que os africanos paguem taxas de juro tão elevadas
que estão associados a uma análise de risco que não é consistente. Países como
a Tailândia, que já teve vários Golpes de Estado, ou como a Geórgia que vive
uma grande instabilidade, têm acesso a uma análise de risco mais favorável
porque existe uma espécie de estigma associado aos países africanos.
Não há só más lições a retirar da gestão da covid-19. Há pontos positivos na gestão da pandemia?
Para além das respostas dos países terem sido mais rápidas que
noutras regiões do mundo, houve mais consistência nessas respostas, muito
embora os comportamentos sociais dos africanos sejam influenciados pela grande
informalidade das transacções económicas também se verificou a introdução, em
muitos países, de novos programas e metodologias para a protecção social, com
acesso às novas tecnologias, que é extremamente positivo e veio para
ficar.
Os africanos conseguiram, também, ganhar o debate internacional
sobre fazer evoluir toda a questão da fabricação de vacinas e medicamentos no
continente. Agora já ninguém disputa isso, existem vários projectos e
iniciativas à volta disso.
Para além de que, os africanos tiveram o seu centro de controlo de
doenças CDC África coordenando as compras e as respostas. Demonstrou uma certa
unidade, que existe nos países europeus, mas que foi muito aleatória e que
levou a divisões. Em África também houve divisões, mas foi seguramente uma das
regiões que demonstrou mais capacidade de respostas unificadas. Mas é evidente
que esta é a parte sanitária do problema, depois temos a parte económica e
sócio-económica que foi muito mais difícil.
Em
relação à zona de livre comércio continental, em que ponto está?
Esse processo está a avançar e se considerarmos que existe já um
acordo para 87,7% das linhas tarifárias, é muito bom porque foi feito e obtido
durante a pandemia. Também é claro que lançamos a Zona de Livre Comércio em
plena pandemia e portanto o secretariado ainda tem muitas debilidades ligadas a
esta situação e a esse contexto.
Não podemos deixar de mencionar que existem 40 ratificações e uma
outra em vias de ser concluída, o que fará 41 ratificações, o que tendo em
conta a velocidade com que outras zonas de livre comércio conseguiram chegar a
esta etapa, é uma demonstração de grande vontade política.
O que me preocupa, é que há um grande debate à volta das regras de
origem, que está a levar a que não se implemente na realidade o acordo. Existem
todas estas grandes decisões, mas o acordo na sua praticidade ainda não está a
ser implantado por causa do problema das regras de origem. Ligado a isto também
está o problema da propriedade intelectual.
Acho que os países mais importantes nesta discussão, que são os
países que têm mais industrialização, como é o caso da Nigéria, Egipto e África
do Sul, têm que chegar a um acordo mais rápido sobre as suas divergências,
porque isto está a levar que se comece um pouco a duvidar da velocidade que se
queria imprimir à Zona de Livre Comércio.
Em que posição chega o continente africano a esta Cimeira União Europeia - África?
Acho que esta cimeira de África com a União Europeia, infelizmente
não vai ser uma cimeira com grandes decisões estruturais. A preparação está a
levar-nos ao debate habitual que é de haver uma série de proclamações de
intenções unilaterais por parte da Europa, foi o que aconteceu na última
cimeira. Enquanto que os negociadores, aqueles que se sentam à mesa para
negociar o detalhe das decisões, não estão com o mesmo apetite para
proclamações. A declaração é extremamente curta e sucinta, pelo menos, de
acordo com os rascunhos que circulam neste momento.
Não vai ser mais que uma grande pompa, uma oportunidade para se
poder dizer que finalmente se fez a cimeira depois de tantos adiamentos e tirar
um pouco do sufoco de que a África está a cair nas mãos de outros, o que é, de
facto, uma forma errada de ver a parceria.
Na realidade o que deveria ser discutido e não vai ser é: que é como é que se muda a dependência do comércio africano em relação à Europa em termos de matérias-primas; como é que a Europa pode participar na transformação estrutural das economias africanas para que elas se industrializem; e como é que todas estas iniciativas à volta das mudanças climáticas devem ser feitas, também, para dar a oportunidade aos africanos para participarem na solução do problema e não tratá-los como parentes pobres que precisam de algumas migalhas, quando na realidade não há soluções climáticas sem a participação do continente [africano]”. ANG/RFI
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